"O Português preferiu a poesia da aventura, do sonho, a ser impelido para as coisas, ao trabalhinho que teve o holandês, que teve o inglês. Agora Portugal vai ter problemas. Portugal vai ter o grande problema que nós todos temos, que é sermos o que somos. De nos cumprirmos. O grande problema que nós temos na vida é cumprirmo-nos." (...) "Nós fomos feitos para o impossível. Deixe o possível para os alemães. O possível, com grande magnanimidade eu deixo para os alemães e para os franceses. Nós o que temos que cumprir é o impossível."
Agostinho da Silva
Portugal foi formado na beira de um Oceano, não nas margens do Danúbio ou nas escuras florestas góticas da Escandinávia ou nas cinzentas colinas dos Países Baixos. A viva luz ambiente, a pressão -por vezes esmagadora - imposta pela presença de uma imensa e turbulenta massa oceânica imprimiu desde cedo um carácter muito especial aos povos que foram chegando a este extremo europeu, que aqui se foram mesclando, camada após camada, até enformarem aquilo que hoje conhecemos como o "português" e que espalhando-se pelo mundo fora, haveria de botar sementes de Lusofonia no Brasil, em África e na Oceânia que ainda hão de frutificar e unir - nesse carácter aventureiro comum - todos estes povos dispersos pela geografia e pelos acasos da História.
Foi a paixão pela aventura, que nunca existiu num formato tão essencial e absoluto em nenhum outro povo além, talvez, excepto, nos gregos e dos fenícios, de que a portugalidade é plena herdeira, quer geneticamente, quer em termos de temperamento e alma. Se holandeses, ingleses e alemães se bastam e satisfazem como formiguinhas metódicas e organizadas, o português aborrece-se de morte nessas tarefas contabilistas e contadoras e sonha com mares abertos, com aventuras em terras distantes e feitos únicos. Por isso um país tão pequeno conseguiu colonizar um país continente tão extenso e diverso como o Brasil, por isso o regime de Salazar fez tudo quanto pode para travar os fluxos migratórios para África, por isso a emigração portuguesa foi sempre tão intensa ao longo de tantas décadas (e por isso mesmo regressa agora em plena força). O português não se fez para viver em Portugal. O português é acima de tudo um cidadão do mundo, fiel à aventura do Descobrimento e do Desbravamento e sonhando com novos mares e terras renovadas. Quando tentaram fazer de nos um "país europeu" entrámos em longa depressão coletiva numa Europa de germânicos e eslavos com quem não nos identificamos nem na alma profunda, nem no temperamento superficial. Os nossos irmãos mediterrâneos, espanhóis, italianos e gregos comungam connosco deste sentido sentimento de inferioridade em relação aos Senhores do norte da Europa, mas não tem a força anímica que já revelámos ter, resistindo a duas perdas de independência e mantendo as fronteiras mais estáveis de todo o continente.
Portugal tem a missão e o dever históricos de liderar os povos mediterrâneos, da margem nortenha deste mar, até um ponto comum, que os separe dos povos do norte que sempre cobiçaram os seus Estados e solarengas paragens, que os repila para as escuras e húmidas florestas do norte e que refundem em torno dos conceitos mediterrâneos de "vida conversável" e aventura empolgante as formas de vida que os neo germânicos tornaram em contabilidade e aforramento financeiro. O Homem mediterrâneo não foi formado para contar e somar, o mediterrâneo, de onde brota em primeira linha o portugueses e através dele, o lusófono, fez-se para viver e contar o que viveu, não para somar o número de pregos que usou na sua caravela, nem os quilos de pimenta que embarcou em Cochim. Foi quando o passámos a fazer que desenhámos o fim de Portugal e preparámos - séculos depois - a adesão a uma Comunidade europeia com a qual nada temos a ver.
2 comentários:
Grande, grande...
É assim, sem complexos imaginários, que o português se pode reconhecer. Sem necessidade de se equiparar a nada... o modelo do português só pode ser ele mesmo, aventurando-se por um mundo ilimitado.
Abraço, Clavis.
Pois não sei... Contar e somar vem-nos dos fenícios, e se se espalhou por esses Nortes escuros foi a partir da diáspora de um outro povo do mediterrãneo...
Da mesma forma, não duvido de que tenhamos tido obscuros carpinteiros que sabiam, ao certo, com quantos pregos se fez a nau do Gama. Isso não veio depois da Índia - veio antes, ou não teríamos chegado sequer às Berlengas.
Eu receio mais a atitude que uma vez vi num australiano que encontrei num comboio, e que vagueava de inter-rail pela Europa, feliz e despreocupado, desde há vários meses. O rapazinho estava furioso: com um engano no horário (impresso) dos comboios.
Eu também acho que os Portugueses preferem o sonho e a poesia da aventura; hoje, o mundo está aberto para eles. Se forem mal-tratados, faz parte da aventura; se ficarem doentes e não houver um bom hospital, faz parte da aventura. E há quem queira uma vida segura, dentro do inseguro que é o mundo: a injustiça é que, a esses, é dificil emigrar para as góticas florestas nórdicas.
Terei situado o famigerado "lugar da política"?
PS. Também podemos seguir a receita grega: e ter escravos. Aliás, um desses desgraçados está imortalizado num diálogo de Platão (quem sabe se a seu contragosto? Ninguém se lembrou de lhe perguntar) como interlocutor involuntário de perguntas matreiras de Sócrates sobre triângulos e outras secas dessas. Ele não teve a liberdade de mandar Sócrates bugiar; e é bom não nos esquecermos disso, nós os admiradores da filosofia.
Enviar um comentário