Será, contudo, essa conciliação viável, verdadeiramente viável? A nosso ver, não. Desde logo, porque o Ocidente não precisa de ir ao Oriente buscar esse “sentido da unidade do ser”. O Ocidente sempre o teve, nomeadamente, em Espinosa, como, aliás, o próprio José Marinho reconhece – daí o dizer-nos, nessa mesma passagem, que o “sentido da unidade do ser” se refere tanto ao “budismo” como à “finalidade espinosista”. Simplesmente, o Ocidente escolheu, para o bem e para o mal, outro caminho: o caminho da valorização da individualidade irredutível de todos os seres. Teve esse caminho, como qualquer outro, vantagens e desvantagens. Comecemos pelas vantagens: ao defender, sobre o sentido da unidade do ser, a individualidade irredutível de todos os seres, designadamente dos seres humanos, o Ocidente gerou, no plano político, sistemas em que os direitos humanos são mais respeitados. Obviamente, como todas as perspectivas, também esta é reversível: ao ter-se, no Ocidente, quase absolutizado a individualidade de cada ser humano, criaram-se sociedades cada vez mais destituídas de um qualquer sentido comunitário.
No Oriente, ao invés, em que a existência de cada ser humano é, em geral, sempre já perspectivada na sua relação com a Comunidade – nas suas várias formas de concretização – e, mais amplamente, na sua relação com a Natureza e, em última instância, com o Cosmos, a perspectiva perante a morte, por exemplo, tende a ser diferente, dado que, se todo o indivíduo existe em função do Todo – ou seja, da Comunidade, mais amplamente, da Natureza, em última instância, do Cosmos –, a morte individual, mesmo a morte de uma criança, não constitui necessariamente um facto absurdo. Ao invés, no Ocidente, em que a existência de cada ser humano é, em geral, perspectivada como um fim em si próprio, sem qualquer relação, pelo menos essencial, com a Comunidade, nem, muito menos, com a Natureza ou com o próprio Cosmos, a morte individual, em particular a morte de uma criança, não pode deixar de constituir, apesar de todas as promessas cristãs de uma vida post mortem, um facto absurdo, irredutivelmente absurdo, tal como veio enfim, de forma certeira ainda que anacrónica, denunciar o existencialismo ocidental contemporâneo, como se essa trágica visão da morte não fosse uma mera consequência do caminho trilhado pela história da filosofia ocidental, pelo menos desde o atomismo grego.
Saídas? Seria tentador, na esteira de Antero de Quental, prefigurar um regresso do Ocidente ao Oriente, de modo a que ele pudesse resgatar esse “sentido unitário do ser” que, tragicamente, perdeu. Simplesmente, não é esse – atrevemo-nos a dizê-lo – o destino do Ocidente. A nosso ver, cumprir-se-á este na extremação da cisão entre Uno e Múltiplo, entre Verdade e Ser, até esse “extremo da cisão” onde, como lapidarmente escreveu José Marinho na sua Teoria do Ser e da Verdade, “se sabe, enfim, todo o ser cindido da verdade, e a verdade se diz vácua abstracção que não convém a ser algum”[1]. Eis, aliás, ainda segundo o autor da Verdade, Condição e Destino no pensamento português contemporâneo, o extremo a que, historicamente, já chegámos – daí o nosso filósofo caracterizar a época histórica como a “época da cisão extrema”[2], ou seja, como a época em que a “situação de extrema separatividade [do homem] em relação a Deus e à Natureza” [3], e a si próprio, se cumpre plenamente, tese que, de resto, nos reiterou por diversas vezes – daí, a título de exemplo, estas suas palavras: “Roto o laço que prendia o homem a Deus, rompeu-se o laço que prendia o homem ao mundo, ao cosmos, à humanidade. Estamos hoje vivendo plenamente esta situação.”[4].
Como se depreende desta passagem, emergiu essa situação da cisão progressiva entre “Deus” e o homem, o que, por sua vez, gerou um progressivo ateísmo e, contrapolarmente, um progressivo antropocentrismo ou “humanismo”. Daí ter-se José Marinho referido ao “humanismo exaustivo”, daí ainda o ter inserido “o pensamento de cisão extrema” na “linha do ateísmo e do universo mecânico”[5] – ou seja, na linha da redução materializante, tecnicizante, do mundo[6] –, daí ainda, enfim, o ter caracterizado a nossa época como “o ciclo do tempo abstracto”[7], do “tempo dispersivo, facilmente judicioso e desatento ao essencial”[8], “em que tudo se polariza nos contrastes e oposições mais graves e perturbantes”[9]. Eis, ainda segundo o autor da Teoria do Ser e da Verdade, a linha de pensamento que se veio a consagrar na modernidade, em particular a partir de Kant[10] – e por isso o próprio Marinho expressamente se referiu, por diversas vezes, à “crise desenhada pela filosofia de Kant”[11]. Tal, no entanto, como todas as crises, também esta crise tem em si um oculto alcance, oculto alcance esse que este nosso filósofo procurou assinalar, recorrendo, para tal, à imagem do “médico que se sabe doente e mortal”, e que, por isso, se salva, contraposta à do “médico que se encontra muito aquém do insofismado sentido da doença e da morte”, da sua própria doença e da sua própria morte, e que, por isso, se perde[12].
Eis, analogamente, todo o oculto alcance da “crise civilizacional” em que hoje vivemos – tal como Kant, ao radicalizar a cisão, toma consciência da “iniludível necessidade de solvê-la”, assim também a actual “situação de extrema separatividade em relação a Deus e à Natureza” levará – poderá levar – o homem a pugnar pela “mais pura e perfeita união” entre o homem, a Natureza e “Deus”, assim “anulando Deus, homem e Natureza tais quais na terra se consideram”[13]. Daí ainda a valorização que José Marinho faz do ateísmo enquanto fenómeno histórico. Na medida em que “a crença em Deus degenerou, arrastando consigo o próprio Deus”[14], o ateísmo contemporâneo acaba por ser – por poder ser – a via através da qual a humanidade purificará a sua relação com “Deus”, expurgando-a da lógica antropomórfica, antropocêntrica. Eis, aliás, a “hipótese” que o próprio Marinho equaciona em diversas passagens da sua obra – a título de exemplo, atentemos nestas: “Tudo se passa como se Deus preferisse ser negado a ser minorado em qualquer forma de antropomorfismo.”; “Deus, desde sempre, não confia na fé e no saber dos homens. Ser negado estava também nos seus desígnios.”[15]. A ser assim, todo esse trânsito histórico que aqui temos reconstituído não é senão o mesmo histórico trânsito através do qual o homem vem a apreender “Deus” da forma mais depurada, mais próxima, “responsavelmente mais próxima”[16].
Daí, aliás, na perspectiva de José Marinho, todo o papel histórico do cristianismo: ao afirmar uma visão do divino centrado, encarnado no homem, uma visão que, extremada, conduziu ao antropocentrismo e, contrapolarmente, ao próprio ateísmo, acabou ele por extremar a situação de “extrema separatividade em relação a Deus e à Natureza” – e, por isso, na sua Teoria, caracterizou Marinho a religião cristã como a “religião do unívoco para a cisão extrema”[17], “como religião absoluta no trânsito da plena univocidade para a cisão extrema”[18], “como religião extrema, ou, mais propriamente, [como] aquela a que foi possível realizar a síntese de toda a história e [de] toda a vida humano-divina, sendo assim a religião decisiva, ou religião do trânsito da visão unívoca [,] e do ser da visão unívoca, para a cisão extrema.”[19]. Daí ainda que Marinho veja no cristianismo a fase terminal, “decadente”, da nossa época histórica[20]. Exactamente por isso, porém, por ser a “religião de uma decadência”, da nossa própria “decadência”, nela, como escreveu ainda o autor da Teoria, “fulge o sinal da profunda e obliterada harmonia”, “o sentido subtil da relação”, “o mais fundo vínculo de Deus, Homem e Natureza”[21]. E, por isso, através dela, igualmente através dela, acaba por se cumprir o programa filosófico que Marinho se exorta, e nos exorta, a realizar – ainda nas suas palavras: “Nós achamo-nos hoje na consciência extrema da cisão e a filosofia, para nós, consiste, por um lado, em enunciar essa mesma cisão, e por outro lado, em restabelecer a imprescritível verdade divina.”[22]. Eis, em suma, o destino que, segundo Marinho, nos cabe, enquanto ocidentais, cumprir.
[1] Cf. Teoria, p. 80.
[2] Cf., a título de exemplo, ibid., p. 82.
[3] Cf. VCD, p. 129 (n.1).
[4] PFLCOT, p. 360.
[5] Cf. ibid., p. 263.
[6] Linha que deriva, nas palavras do próprio Marinho, do “velho sonho de reconquistar o Paraíso pelos simples caminhos do saber natural e do universo mecânico” [cf. NISOT., p. 340].
[7] Cf. Teoria, ed. cit., p. 117.
[8] Cf. VCD, p. 219.
[9] Cf. ibid., p. 130.
[10] Como por diversas vezes defendeu, foi mesmo a “crítica kantiana” que “anunciou, em termos graves e solenes, a época da cisão extrema” [cf. ibid., p. 167].
[11] Cf., a título de exemplo, ibid., pp. 181 (n.1) e 244.
[12] Nas suas palavras: “Kant é um autêntico e nobre crítico, consciente da profunda cisão, da crise de que a sua crítica provinha, e da iniludível necessidade de solvê-la. Ele é, assim, em imagem, o médico que se sabe doente e mortal. A situação do positivista é a do médico que se encontra muito aquém do insofismado sentido da doença e da morte, tudo ignorando, e por isso mesmo, da saúde como da vida.” [SVM, p. 396].
[13] Cf. Aforismos, p. 112.
[14] Cf. Doc. III, p. 281
[15] Ibid., pp. 177 e 389, respectivamente. Cf., igualmente, ibid., p. 317: “Deus está mais interessado em revelar-se e ser aceite na sua Revelação do que em ser objecto de crença.”.
[16] Eis, igualmente, a “hipótese” que Marinho equacionou – ainda nas suas palavras: “...porque se tornou Deus o mais remoto para mim? A resposta é: para que eu me torne dele responsavelmente mais próximo.” [ibid., p. 222].
[17] Cf. Teoria, p. 132.
[18] Cf. ibid., p. 152.
[19] Cf. ibid., p. 135.
[20] Nas suas palavras: “A este ciclo do tempo do ser da cisão, por certo o mais breve de todos, o ciclo do tempo abstracto, propriamente histórico, que ocultou quase inteiramente na pré-história ignota as relações do ser e do saber, preside na fase terminal e extrema o cristianismo (…).” [ibid., p. 117].
[21] Cf. Estudos, p. 38.
[22] PFLCOT, p. 511. Não propriamente em “restabelecer” mas em “reconhecer” – dado que, ainda segundo Marinho: “…não está o problema em ver ou dizer como se restabelecerá a perdida verdade harmoniosa. Está em ver como ela é e como, se aparentemente se altera, nada essencialmente a afecta.” [ibid., p. 247].
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4 comentários:
Renato, o problema parece-me estar em que no teu texto, como em muito do pensamento ocidental, se confunde espírito com cultura... Não vejo que sentido possa ter aplicar ao espírito, ou à mente, as noções geográfico-culturais de Ocidente e Oriente... Aquilo que no Ocidente se designa como religião, espiritualidade e pensamento oriental nunca se viu a si próprio como "oriental", mas apenas como vias - múltiplas, mas convergentes - para a plena libertação do espírito de todos os conceitos e representações, incluindo os de indivíduo e comunidade, uno e múltiplo, Ocidente e Oriente... Penso ser isso que o melhor do pensamento português nos oferece e é por isso que não o considero nem ocidental nem oriental, mas o embrião de uma coisa intemporal e sempre nova, um Renascimento autêntico, sob o signo da Saudade vertical, da Saudade que em nós é a instância do Instante, a urgência do Despertar sem predicados.
Como já aqui escrevi...
«Contestarão, alguns, a possibilidade de a cultura ser uma via para a plena realização espiritual, defendendo que esta se cumpre, ao invés, na superação daquela. Provavelmente, defendem também que a filosofia se cumpre para além de todas as culturas, de qualquer vinculação a uma língua em particular. Na nossa perspectiva, porém, passa-se exactamente o contrário: é no aprofundamento das virtualidades de uma língua que o discurso filosófico pode emergir enquanto tal. De outro modo, ele será sempre apenas um discurso comum: mais facilmente comunicável, mas não muito mais do que isso. Analogamente, a via da plena realização espiritual passa, na nossa perspectiva, pelo aprofundamento do sentido de uma cultura, da mundividência que lhe subjaz. De outro modo, ela será apenas uma via geral: mais facilmente generalizável, mas não muito mais do que isso.»
Diferença de perspectivas: creio que a cultura é a via geral, embora limitada aos grupos apegados à ideia estreita das fronteiras linguístico-culturais, enquanto a espiritualidade é a via diferenciada, própria dos aristocratas do comum, ou seja, do mais alto e singular.
Lamento, penso à portuguesa maneira: a que converte limites em limiares.
Há muitas maneiras "portuguesas" de pensar. O que, de aliás, não me parece de lamentar...
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