(Braima Injay S/ título, acrílico, pigmentos, colagem, 120x120 cm, 2002)
“Uma língua é o lugar donde se vê o Mundo e em que
se traçam os limites do nosso pensar e sentir. Da minha
Língua vê-se o mar. Da minha Língua ouve-se o seu rumor,
como da de outros se ouvirá o da floresta ou o silêncio do
deserto. Por isso a voz do mar foi a da nossa inquietação.”
|Vergílio Ferreira
.....
Mar! Mar!
Mar! Mar!
Quem sentiu mar?
Não o mar azul
de caravelas ao largo
e marinheiros valentes
Não o mar de todos os ruídos
de ondas
que estalam na praia
Não o mar salgado
dos pássaros marinhos
de conchas
areias
e algas do mar
Mar!
Raiva-angústia
de revolta contida
Mar!
Silêncio-espuma
de lábios sangrados
e dentes partidos
Mar!
do não-repartido
e do sonho afrontado
Mar!
Quem sentiu mar?
|Arménio Vieira
(1962)
.....
“Seus olhos subiram do chão até se fixarem no rosto dele. Foi
quando ela gritou, tapando os olhos. Os restantes se aproximaram de
meu pai e um rumor se espalhou como nuvem fria.
- Os olhos dele!
Sim, os olhos de Agualberto não eram os mesmos. Ninguém conseguia olhar meu pai de frente. Porque aqueles olhos dele estavam
da mesma cor do mar: azuis, de transparência marinha. Sua humanidade
estava lavada a modos de peixe. Ele ficara muitíssimo demasiado
tempo debaixo do mar. E se espalhou um murmúrio de que Agualberto
tinha os olhos de tubarão, tal iguais aos grandes e dentilhados
bichos.
A partir desse dia meu pai se adentrou em si mesmo, toda a hora
sentado na praia contemplando o horizonte. Passavam gentes vindas de
longe para espreitar de longe o preto de olhos da cor do mar.”
|Mia Couto, Mar me quer.
________
Da minha Língua vê-se o mar
Uma Língua que dá a ver o mar não pode ser encarada como uma trama anquilosante de afirmativa ruminância, dentro de paradigmas estreitos e instauradores de territórios avessos à perdição, à errância, à plural entrega ao amor como via de consumação do que há de sublime em cada um dos homens.
Em primeiro lugar, temos que nos precaver contra a atávica tendência de territorializar mesmo o que está para lá dos limites sedentários duma visão desaventurada da vida: o mar não deve ser objecto duma apropriação territorializante, comparável à alucinada e desumana territorialização de África, o continente futurante, na mesa alarve da Conferência de Berlim.
Uma Língua que dá a ver o mar é para lá das dicotomias, para além, muito para além da fixação em eixos orientalizantes e ocidentalizantes, é, no fundo e no âmago, uma abertura para a impossibilidade da orientação, para a desorientação mais desapropriadora. É nessa abertura que o problema da orientação emerge, reiteradamente, como o problema premente, nunca de todo resolvido.
Querer ter um rumo já todo prefigurado,a régua e a compasso, nas algibeiras paternalistas da história é ver pouco, e não é nem ver ao perto, é ver a partir de um espaço quadriculado que instaura um cubismo de todo avesso ao encontro de culturas, ao encontro das vozes insepultas que não se deixam enclausurar numa História sem espaços desaguáveis, abertos a temporalidades imprevisíveis. Um espaço sem linhas de fuga não pode conter a força inimaginável duma Língua que dá a ver o mar.
O mar que se dá a ver na Língua que dá a ver o mar tem em si os gritos dos homens, das mulheres e das crianças, envasadas nos barcos negreiros em direcção da escravidão que o olhar territorializante plantou no Novo Mundo; tem o cheiro do sangue, da pólvora, da lâmina fria das catanas, da fome e do degredo; tem as rezas dos moribundos, as despedidas e a sombra indelével dos esquecidos, apenas névoa e fantasia.
Mas tem também o aroma do para lá do horizonte, a abertura plena à aventura que torna a vida humana capaz de elevação e de mundo. Ser capaz de mundo é ser para lá dos limites da vida encerrada na mesmidade e na repetição. É assumir uma vida aportável a qualquer porto e aí, mesmo no imo insolúvel da perdição, encontrar-se humano e afim, disperso e pleno, na diversidade e na diferença cultural e existencial, é, no fundo, não ser dum território insulado, sem fronteiras rasgáveis e sem possibilidades de diáspora e divagação.
É, também, saber que todo o homem é de toda a Terra, e que mesmo isso é pouco para quem nasce. E isso é o próprio do que se diz a partir duma Língua que dá a ver o mar. Daí emerge a impossibilidade da mais radicada orientação, porque, podemos demandar-nos, uma Língua que dá a ver o mar, o que dará a ver quando, através dela, olhamos para dentro? Que mares não navegados se nos abrem aí, das vésperas desse Abismo? Da amurada dessa aventura náutica que está em muito por fazer?
O que poderemos encontrar se conseguirmos dissolver as linhas constringentes desse esganiçamento ontológico, tão “ocidental”, tão desorientado, que é próprio da egolatria do cogito incapaz de errância?
(continua...)
1 comentário:
Caramba! Raisparta o "Ocidente" e que venha aí um Gengis Khan!
Mas no meio disso um abraço, Paulo.
Enviar um comentário