O RIO
Ser como o rio que deflui
Silencioso dentro da noite.
Não temer as trevas da noite.
Se há estrelas no céu, reflecti-las
E se os céus se pejam de nuvens,
Como o rio as nuvens são água,
Reflecti-las também sem mágoa
Nas profundidades tranquilas.
Manuel Bandeira
ALÉM DA TERRA, ALÉM DO CÉU
Além da Terra, além do Céu,
no trampolim do sem-fim das estrelas,
no rastro dos astros,
na magnólia das nebulosas.
Além, muito além do sistema solar,
até onde alcançam o pensamento e o coração,
vamos!
vamos conjugar
o verbo fundamental essencial,
o verbo transcendente, acima das gramáticas
e do medo e da moeda e da política,
o verbo sempreamar,
o verbo pluriamar,
razão de ser e de viver.
Carlos Drummond de Andrade
TRADUZIR-SE
Uma parte de mim
é todo mundo:
outra parte é ninguém:
fundo sem fundo.
Uma parte de mim
é multidão:
outra parte estranheza
e solidão.
Uma parte de mim
pesa, pondera:
outra parte
delira.
Uma parte de mim
almoça e janta:
outra parte
se espanta.
Uma parte de mim
é permanente:
outra parte
se sabe de repente.
Uma parte de mim
é só vertigem:
outra parte,
linguagem.
Traduzir uma parte
na outra parte
_ que é uma questão
de vida ou morte _
será arte?
Ferreira Gullar
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É tempo da poesia se tornar a política do futuro. A política encarada como drama iniciático, e a poesia como iniciação. Patência do infinito, a vida humana pode elevar-se, a partir do mais fundo e dessa fundura alada pode pretender-se a energia transcensora do que, não estando radicado num viver na planura, corre o risco de se circunscrever e de perder as suas ligações umbilicais ao que não é vivenciável junto ao chão da ágora amestrada a que hoje se chama opinião pública.
Uma poética do espaço cívico terá que ter em conta a necessidade de fazer frente à economia, hoje tornada numa técnica de manietação do espírito, num regresso à sua antiga morada epistémica, a teologia (sigo aqui a lição de Giorggio Agamben). Em vez da insuficiência e da escassez, há que viver o espaço comum da liberdade e da criatividade sob o signo da excessividade e da superação constante dos limites sistémicos a que se conforma o viver sem a caótica complexidade do sonho e do desejo liberto de constrições exteriores à sua emergência grácil, à sua urgência a partir do inominável, do impróprio, do inapreensível substante, magma de onde emerge a energia mítica.
Na mundividência contemporânea a própria líbido encontra-se canalizada para as estruturas conformadoras dos sistemas de produção e de consumo, cujos dispositivos ocupam o lugar objectal do outro, inapropriável na sua radical acosmicidade. É nessa alteridade de substituição que se recriam as possibilidades semânticas e psicológicas da subjectividade humana, desgarrada dum superego social emergente da cultura, para depender de mecanismos para-morais ínsitos no próprio jogo inumano da economia. Hoje a hipoteca vale mais como garante dos vínculos conjugais do que a palavra dada perante os representantes de Deus ou da Lei. E a legislação acerca das relações humanas está cada vez mais próxima da que regula as sociedades comerciais. Isto resulta duma hipercontratualização do espaço social em que a palavra dada quase nada conta face ao jogo de espelhos, dissimulador e disseminador de formas de ser ninguém, que caracteriza cada vez mais o horizonte daquilo a que se convencionou chamar política, encarada como a acção dos partidos e dos seus agentes, estes últimos nunca encaráveis como inteiros, uma vez que o seu carácter se esgota no jogo que se joga a si próprio no afã de convencer o eleitorado a descartar o risco e a riscar o quadrado mais mediatizado do boletim de voto.
E hoje num momento em que em Belém se cozinha um novo bloco central, cabe perguntar pelo futuro desta nossa casa comum que ainda tem, nos seus actos constitutivos, o nome de República, mas que, cada vez mais se deverá chamar Renómica, posto que a sua estrutura económica escapa cada vez mais ao controlo dos poderes públicos e do escrutínio dos cidadãos. Vivemos cada vez mais uma heteronomia radical e inultrapassável pela via duma práxis que não seja auto-poiética. Estamos, portanto, se não assumirmos a poesia do viver exaltante, cada vez mais reféns da prática aracnídea dos agentes da soberania que tenderão a estender teias de interesses nos bastidores e na sombra dos holofotes mediáticos, como se viu com o caso da Ota e do esoterismo republicano que rodeou o estudo que desviou as atenções para Alcochete que, não fosse o caso de já lá estar desde o começo do mundo, pareceria mais um acto de prestidigitação do que de governação, a sua recente descoberta.
Só o reavivar da vida em comunidade, propiciadora de comunicação densa e multidimensional, se poderá estabelecer a vida humana num espaço político que seja vivenciável com inteireza, a partir de dentro e sem barreiras à disseminação cultural e à abolição das fronteiras conceptuais e antropométricas, nascidas duma antropolatria escalonada a partir da recusa da criatividade. Só quem assume a crise e a mudança como o próprio do viver sob o signo da autenticidade vivenciável e não da vida sem autenticidade dos fantasmas que a si mesmos se chamam seres políticos, quando nem em verdadeira sociedade vivem, pode ir além da continuação do mesmo e do já feito.
O resto é coisa de meninos. Deixá-los brincar com os seus castelinhos no areal dos dias.
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