Para quem se vir refletido.
Acendo um cigarro e ligo o som do carro. FM. “Queria saber voar... para do alto poder ver você”. Bonito. Dengoso demais talvez para o meu gosto. Mudo. “ E de repente vi você sair com a toalha no seu corpo”. Lindo, mas todas as estações de rádio parecem conspirar contra mim nesta tarde azul e amarela. SOU UM CANALHA. É fato, e os canalhas não têm sentimentos. Mas estas músicas cutucam-me. Agulhas invadindo suavemente as pontas dos dedos. Não sangra e nem dói, como ela me disse num tempo mítico, enquanto éramos crianças e inventávamos um ao outro, superando o tempo dos relógios e o espaço de metros, milhas e quilômetros de distância
- Queria ter um filho teu. – Ela me disse ainda na semana passada. Ela gosta de falar e... juro por Deus que eu nunca tinha ouvido prova maior de amor e admiração. Os homens, não digo a humanidade, digo os homens, são como crianças: só querem ser amados e admirados, contudo, quando conseguem amor e admiração, eles se rebelam e agridem quem os ama e admira. São feito um menino de um ano que esbofeteia a mãe, enquanto ela o amamenta. Há amor íntegro, puro e verdadeiro até nessa bofetada.
Quando terminamos, pelo telefone como qualquer bom canalha faria, ela soltou a seguinte frase nos meus ouvidos:
- Eu componho, você se esqueceu? Engana-se quem pensa que fazendo um artista sofrer, faz mal a ele. A dor é a matéria prima de que me alimento, querido. Você é parte de mim. Mas tenho agora que vomitá-lo, porque você mesmo quer, não se assuste se um dia você se ouvir lambuzado de vômito no banheiro de uma lanchonete qualquer. – E aí ela desligou e eu fiquei com o telefone na mão, imaginando que nunca seria um escritor de verdade, porque eu demorava um texto inteiro para criar uma única metáfora, ao passo que ela as criava numa conversa com um amigo, num passeio pela praça, numa despedida... numa despedida...
Deve estar fazendo uns quarenta graus. Desligo o rádio. Tudo parado. O rio poluído da minha cidade ferventa gomoso ao lado. Abrir a porta e dar um mergulho seria o suficiente. Mas sou um canalha e os canalhas não se matam e ela disse que queria ter um filho meu... um filho... e meu! Vai entender.
Ela tinham (isso não é um erro, porque ela era mesmo mais de uma) uns olhares que me liam e eu me assustei e quis ir embora e ela havia desenhado meu rosto e nenhum espelho antes havia me dito que um canalha podia ter os olhos tão tristes. Então saí correndo com o meu desenho embaixo do braço e escalei uma montanha de cocaína e no outro dia eu não tinha mais nariz, nem olhar, nem nada e o papel que eu carregava nas mãos estava em branco, como se jamais tivesse sido tocado, nem por lápis, nem por caneta e nem por mãos de gente... e ela disse que queria ter um filho meu! Mas eu achei que ela era doida, porque quem poderia ser tão lunática a ponto de querer gerar uma vida a partir de um canalha?
Penso em acender outro cigarro, mas desisto. Viro para o lado e vejo a menina que me observa ao volante de um carro vermelho. Do outro lado, uma outra de olhos verdes me sorri. Mais atrás, essa de cabelos nos ombros buzina pra mim. Só então percebo que todos os carros ao redor são guiados por mulheres. Por dentro da minha cabeça louca, eu arranco os olhos de uma, junto com o sorriso de outra, misturo ao olhar de uma terceira. E te reconstruo toda só pra mim. Frankenstein lírico dos meus sonhos de alcalóide.
Então, enquanto ainda danço em círculos com você dentro da minha cabeça, percebo que uma das moças abriu a porta do carro e vem na minha direção com uma faca nas mãos. Olho então no espelho e a outra se aproxima com uma espada de samurai. A da frente vem com um revólver.
Sem me precipitar, acendo enfim o cigarro. No cerne da fumaça azul, dez mil almas femininas bailam e choram e sorriem e se acumulam no céu, feito imenso telhado, construindo uma noite em plena três horas e vinte sete minutos da tarde.
Estou feliz. Sou um canalha.
A Águia, órgão do Movimento da Renascença Portuguesa, foi uma das mais importantes revistas do início do século XX em Portugal. No século XXI, a Nova Águia, órgão do MIL: Movimento Internacional Lusófono, tem sido cada vez mais reconhecida como "a única revista portuguesa de qualidade que, sem se envergonhar nem pedir desculpa, continua a reflectir sobre o pensamento português".
Sede Editorial: Zéfiro - Edições e Actividades Culturais, Apartado 21 (2711-953 Sintra).
Sede Institucional: MIL - Movimento Internacional Lusófono, Palácio da Independência, Largo de São Domingos, nº 11 (1150-320 Lisboa).
Contactos: novaaguia@gmail.com ; 967044286.
Donde vimos, para onde vamos...
Ângelo Alves, in "A Corrente Idealistico-gnóstica do pensamento português contemporâneo".
Manuel Ferreira Patrício, in "A Vida como Projecto. Na senda de Ortega e Gasset".
Onde temos ido: Mapiáguio (locais de lançamentos da NOVA ÁGUIA)
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2 comentários:
Soubeste personificar fielmente o perfil de um canalha, inclusive o seu lado humano.
Excelente texto para reflexão!
Beijos.
Como já disse a Bia, excelente texto que nos faz reflectir.
Beijos.
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