Divorciamo-nos há mais de trinta anos atrás. Um amor juvenil, um namoro em que as mãos dadas e as carícias trocadas fizeram-me suspirar por mais, acasalamento e de papel passado, uma tarde rabiscado naquela avenida que desce a colina e beija-te no ventre, baixa da cidade onde o Homem ergueu orgulhosos trinta e tal andares para dizer à linha da paisagem, em grito de posse para a terra amante fiel e tolerante que tudo lhe dá e permite, que a sua ambição é grande, alta, excessivamente alta. Antes do divórcio que desalinhou o nosso entrelaçado de afagos, mesmo antes do casamento precipitado pela nossa recém maioridade, eu e tu, musa-cidade, namoramos sem fim nem jeito nas tuas esquinas que me eram tão familiarmente sensuais, esquecidas as convenções nas partilhas de amor que trocamos no teu Sol africano, esse bafo quente que clamava por quinhões de emoções que não lhe regateamos. Era um amor doce, eram beijos sem fim trocados na suavidade da brisa que subia da baía para a colina e amenizava fins de tarde tropicais, doutras vezes impetuosos no travo de sal das ondas que nos lambiam na areia macia das praias, portas do mar onde nos sentávamos, juntos, próximos, amantes, jurando cumplicidades e sorrindo ao viver. Sim, estávamos apaixonados e o nosso namoro era tão lindo como é o amor que líamos nos nossos olhos quando nos encarávamos e sorríamos, enlevados na nossa paixão.
Hoje, os tais trinta anos depois mais coisa menos arrufo, ainda não gosto de falar no divórcio, prefiro afagar em mim o enlevo das carícias da memória, as mãos dadas, os suspiros e as juras que trocávamos. Compreendes-me querida? Como dizem os antigos e que muito conhecem destas coisas dos amores perdidos, não há verdades únicas nas separações e é difícil arrolar razões e encontrar culpados únicos quando os dedos se separam e deixa de se sentir o conforto da sua carícia. Quando o romance termina e esvaziam-se os dias dos calores como aqueles de que o nosso namoro foi farto, quando sobrevém às noites o frio da solidão. Não, nem as palavras de traição são aliçadas, excessivas na injustiça de tanta letra dura para contar lágrimas derramadas, o tempo que passa, a separação. Aconteceu, os Deuses entenderam que o nosso romance precisava de mais provas, outro fogo que não o que nos aquecia na ânsia dos jovens amantes, e ele soçobrou; o nosso casamento, pueril, reprovou-se a tal prova e chumbou o enlace que se jurara eterno. Conheci outras cidades e outros leitos, mais amores, e valha a verdade em contar-te que, neles, também fui feliz. Noutros colos e noutras ruas também amei e o meu sorriso surgiu natural ao acariciar seios-colinas, nas águas doutras praias e na sombra doutras árvores, na crosta urbana doutras terras e doutras cidades também ternas na sua secular carícia, sapiente. Mas há estes momentos de melancolia em que olho o passado e recordo o primeiro amor e cai-me uma lágrima de saudade.
Hoje, vida feita e semi-gasta, com tanto balanço encerrado e de contas ajustadas há em mim uma portinha que não se cerra, abro o peito e espreito, vejo-te a ti minha primeira amada. Vejo-te, minha cidade. Se me olho ao espelho e tento ler as rugas, decifrar as cãs, desisto de nelas contar as desilusões e deixo o meu olhar perder-se no brilho dos olhos quando a memória em ternura te contempla, as avenidas e o caniço, as acácias tão rubras como quente era o nosso enlevo. Fazes-me falta neste Outono da vida, querida. Sinto a falta do teu bafo quente, o brilho do teu sorriso, da magia que era acordar de mãos em ti enlaçadas e acreditando na eternidade da nossa paixão. Desculpa-me pelo que errei, pelas minhas culpas na nossa separação. Desculpa-me. Porque ainda te amo, pelo tempo passam outras que me amam e me tratam bem mas confesso-te em letra de lei que, em mim, ainda não aconteceu amor como o nosso primeiro. Desculpa-me meu amor, minha cidade.
Hoje, os tais trinta anos depois mais coisa menos arrufo, ainda não gosto de falar no divórcio, prefiro afagar em mim o enlevo das carícias da memória, as mãos dadas, os suspiros e as juras que trocávamos. Compreendes-me querida? Como dizem os antigos e que muito conhecem destas coisas dos amores perdidos, não há verdades únicas nas separações e é difícil arrolar razões e encontrar culpados únicos quando os dedos se separam e deixa de se sentir o conforto da sua carícia. Quando o romance termina e esvaziam-se os dias dos calores como aqueles de que o nosso namoro foi farto, quando sobrevém às noites o frio da solidão. Não, nem as palavras de traição são aliçadas, excessivas na injustiça de tanta letra dura para contar lágrimas derramadas, o tempo que passa, a separação. Aconteceu, os Deuses entenderam que o nosso romance precisava de mais provas, outro fogo que não o que nos aquecia na ânsia dos jovens amantes, e ele soçobrou; o nosso casamento, pueril, reprovou-se a tal prova e chumbou o enlace que se jurara eterno. Conheci outras cidades e outros leitos, mais amores, e valha a verdade em contar-te que, neles, também fui feliz. Noutros colos e noutras ruas também amei e o meu sorriso surgiu natural ao acariciar seios-colinas, nas águas doutras praias e na sombra doutras árvores, na crosta urbana doutras terras e doutras cidades também ternas na sua secular carícia, sapiente. Mas há estes momentos de melancolia em que olho o passado e recordo o primeiro amor e cai-me uma lágrima de saudade.
Hoje, vida feita e semi-gasta, com tanto balanço encerrado e de contas ajustadas há em mim uma portinha que não se cerra, abro o peito e espreito, vejo-te a ti minha primeira amada. Vejo-te, minha cidade. Se me olho ao espelho e tento ler as rugas, decifrar as cãs, desisto de nelas contar as desilusões e deixo o meu olhar perder-se no brilho dos olhos quando a memória em ternura te contempla, as avenidas e o caniço, as acácias tão rubras como quente era o nosso enlevo. Fazes-me falta neste Outono da vida, querida. Sinto a falta do teu bafo quente, o brilho do teu sorriso, da magia que era acordar de mãos em ti enlaçadas e acreditando na eternidade da nossa paixão. Desculpa-me pelo que errei, pelas minhas culpas na nossa separação. Desculpa-me. Porque ainda te amo, pelo tempo passam outras que me amam e me tratam bem mas confesso-te em letra de lei que, em mim, ainda não aconteceu amor como o nosso primeiro. Desculpa-me meu amor, minha cidade.
(Imagem de Maputo, ex-Lourenço Marques, de autoria de Helena Afonso e encontrada aqui, gostei tanto dela que... trouxe-a comigo: cola-se bem à que guardo no meu álbum íntimo, aquele beijo que diariamente desfolho antes de adormecer.)
12 comentários:
O dia hoje, afigurava-se-me triste e cinzento, apesar do sol que, indiferente ao meu estado de espírito, se ergueu no céu e teima em entrar pela minha janela.
Vim à internet meio a contra-gosto, força do hábito ou da preguiça; disposta apenas a passar os olhos por estas páginas sem me fazer ouvir...
Mas, ao ler esta carta de amor, não pude deixar de comentar...
Que bela!
Sei o que é amar assim uma cidade porque tenho o Porto cravado no coração desse mesmo jeito.
Mas nunca tinha visto ninguém descrever uma paixão assim como o Carlos o fez... E soou-me tão belo, tão belo, que não pude deixar de lho dizer.
Um beijo*
PS: Agradeço as palavras que deixou no meu abismo. Chegou a comover-me. Creio-as totalmente imerecidas mas, de todo o modo, sorrio ao pensar que posso tocar alguém com as minhas modestas palavras...
Muito obrigada :)
Como a Frankie já referiu, esta é uma belíssima carta de amor.
Gosto muito da forma como transpões as emoções e os sentimentos para o papel.
São tão reais e genuínos...:)
Beijinhos.
:-)
bjs a quem lê os sentimentos além das letritas arrumadas...
(Frankie: não exagerei. "eu sei que tu sabes" que não. e nada mais disse pois doeu-me o post acima daquele, e sorri sem achar que bada devesse acrescentar ao comentado, ao abaixo do tal...
se permites um conselho dum desconhecido, please anima-te e usa a caneta como arma: escreve, escreve até purgares tudo. no fim, quand fizeres "guardar como" verás que te sai um ciciar de alívio... - fala quem... ok.)
(andorinha: tenho-te visitado. mas como já contei sei lá aonde, sou muito mais da leitura dos silêncios que do uso habitual do comentário. espero que o/me compreendas...)
Carlos, no que me diz respeito, não precisas de te explicar ou "justificar".:)
Santo Deus! Até me deixas encabulada...
Comprendo-o e compreendo-te perfeitamente.
E nunca faço essas "contabilidades"...
O blog está sempre aberto para os amigos que vão se e quando querem...e se não querem continuam a ser amigos na mesma:)
Estás à vontade, a sério.
Carlos,
hoje sinto a alma assim pequenina pequenina e não consigo dela arrancar grandes palavras.
Mas prometo que, assim que possível volto para responder "desentemente" (e num "tasco" mais adequado).
Um beijo*
:-)
Sorri!!!!!! o Sol hoje não nos defraudou! já reparaste como ele o faz? e ele é esperto, ó se é....
... aguardo a tal resposta "desente"! :-)))
Ai Cristo! Estou mesmo mal!!!! Escrevi "desente" -_-''
Sorry...
(Eu bem disse que não estava em dia de escrever...decentemente) ;)
Beijo*
PS: Aqui no Porto o sol ainda não deu grandes ares da sua graça; só há uma aragem um tanto quanto desagradável a entrar-me pela janela...
oh Frankie... eu já perdi a bergonha ortográfica há muito... se não é irrelevante, há Mais na escrita que...
(e olha para mim: duvido que alguém dê tantos berros em casa, pergunta recorrente: "olha lá! como é que se escreve...?" lol)
mas muito mais importante que isso: e o Sol? já despontou? se não, "vê-o": ele está lá, tímido, atrás do que parecem nuvens mas afinal é o seu púdico véu... ;-)
ah! sorri-lhe, escreve(-lhe) uma coisa "bonita", e ele aparecerá, vais ver!
:-)
que 'bergonha' em não ser do Porto! até me sinto envergonhado :-))))
Primeiro amor é primeiro amor! Ainda que os deuses imponham provações não há antidoto que esmoreça nossa raiz, está é a referência que trazemos em nosso bojo ad eternum.
Mui bela a tua carta de amor e Maputo é um lugar lindíssimo, pelo menos assim o deduzi ao ver a foto!
Beijos.*
Enviar um comentário