Dissertar sobre um determinado pensamento é, fatalmente, dissertar sobre a sua actualidade. Só nos é possível falar de um determinado pensador na exacta medida em que ele tem ainda algo para nos dizer. O mesmo se passa com António Vieira, com o seu pensamento, com o seu projecto: o Quinto Império. O mesmo se passa com Platão, Aristóteles, Nietzsche ou Hegel. Se eles já não têm nada para nos dizer, impossível, ou, se possível, inteiramente fútil, é falar sobre eles. Tão inteiramente fútil quanto avaliar a importância de um determinado pensamento no estrito horizonte da sua época – se um pensamento tem algum valor é na exacta medida em que transcende o estrito horizonte da sua época, em que consegue repercutir-se na actualidade... Nessa medida, ao dissertarmos sobre o projecto quinto-imperial de António Vieira, iremos procurar, sobretudo, dissertar sobre a sua “actualidade”.
I
Ao dissertarmos sobre a actualidade do projecto quinto-imperial de António Vieira iremos imediatamente suscitar a desconfiança, senão mesmo a incredulidade, de muitos. Dirão uns que tal projecto é fruto de uma imaginação particularmente delirante e que, ontem como hoje, não deve por isso merecer um instante sequer da nossa atenção, dirão outros, mais condescendentes, que tal projecto é fruto de uma época particularmente propensa a tais delírios e que, na melhor das hipóteses, deve, por isso, ser perspectivado com todo o distanciamento histórico.
Todos aqueles que assim reagem incorrem contudo, a nosso ver, numa série de equívocos. Desde logo porque confundem o que no projecto quinto-imperial é verdadeiramente essencial com o que nele é meramente circunstancial, assim não vendo o que simultaneamente transcende a pessoa e a época em causa. Com efeito, muito para além do singular perfil da pessoa de António Vieira e de todas as reais ou imaginárias particularidades da época, reflecte o projecto quinto-imperial uma aspiração que desde sempre esteve presente em todas as épocas e em todos os homens: a aspiração pela optimização ontológica do mundo existente, pela plena revelação do sentido ou verdade de todo o ser, pela suprema realização do homem, de cada um de nós.
Eis, essencialmente, a aspiração que António Vieira procurou cumprir – quer através da sua obra, quer através da sua própria vida. Ao compreendermos isto, poderemos ainda, decerto, ridicularizar, até à exaustão do riso, o projecto quinto-imperial. Importa contudo ter presente o seguinte: ao rirmo-nos de António Vieira, teremos também, por um mínimo de coerência, que nos rir de todos os grandes homens, desde logo, de todos os grandes filósofos, pois que também todos eles, de um modo mais ou menos assumido, de uma forma mais ou menos insistente, procuraram cumprir essa aspiração.
Efectivamente, quando Aristóteles, na esteira de Platão, nos dizia que todos os entes tendem para a optimização ontológica de si, para a sua suprema realização, estava já a assinalar esse trânsito do qual o projecto quinto-imperial é expressão. Todo o ser é trânsito para a verdade, para a plena revelação de si – eis o que Platão, Aristóteles e todos os outros grandes filósofos, pelo menos até Hegel, nos disseram. António Vieira nada nos disse de diferente. O seu projecto quinto-imperial é apenas a consagração desse trânsito: o trânsito no qual e pelo qual todo o ser se cumpre, o trânsito no qual e pelo qual todo o ser tende para a verdade, para a plena revelação de si, para a sua suprema realização. Essencialmente, o Quinto Império não é senão isso: a prefiguração da optimização ontológica do mundo existente.
Na nossa perspectiva, é à luz desse horizonte que António Vieira realiza toda a sua obra. Mesmo quando parece atender apenas às vicissitudes da sua época, Vieira nunca perde de vista esse horizonte. Daí, aliás, a razão de todo o seu empenhamento político – apesar do Quinto Império ser sobretudo um projecto espiritual, ele era também, enquanto realização histórica, humana e universal, um projecto político, mais exactamente, um projecto mediado por algumas realizações políticas. Só através destas se poderia aquele, em última instância, cumprir – uma vez que só através da paz terrena pode o homem, pode cada um de nós, disponibilizar-se para realizar enfim essa viagem que mais importa, na procura da mais estreme união com o absoluto ser divino, com o absoluto ser da verdade.
António Vieira é bastante claro a esse respeito. Por um lado, o Quinto Império é essencialmente um projecto de dimensão espiritual: ele visa consagrar a mais estreme união do homem, de cada um de nós, com Deus. E nisso ele se distingue, irredutivelmente, de todos os outros impérios, cuja motivação era essencialmente política ou, quanto muito, civilizacional. Por outro lado, porém, enquanto realização histórica, humana e universal, ele era também, como dissemos, um projecto de dimensão política. Daí todas as mediações terrenas que, segundo Vieira, seriam necessárias para que, por fim, o Quinto Império se cumprisse. Não há pois, por isso, nenhuma contradição entre o plano político e o plano espiritual. O primeiro realiza-se apenas em função do segundo. A inversão desta ordem significaria, aliás, a inteira perversão da natureza do projecto quinto-imperial. Não fosse o Quinto Império, muito mais do que apenas mais um outro Império, um Império outro. O Império Outro.
I
Ao dissertarmos sobre a actualidade do projecto quinto-imperial de António Vieira iremos imediatamente suscitar a desconfiança, senão mesmo a incredulidade, de muitos. Dirão uns que tal projecto é fruto de uma imaginação particularmente delirante e que, ontem como hoje, não deve por isso merecer um instante sequer da nossa atenção, dirão outros, mais condescendentes, que tal projecto é fruto de uma época particularmente propensa a tais delírios e que, na melhor das hipóteses, deve, por isso, ser perspectivado com todo o distanciamento histórico.
Todos aqueles que assim reagem incorrem contudo, a nosso ver, numa série de equívocos. Desde logo porque confundem o que no projecto quinto-imperial é verdadeiramente essencial com o que nele é meramente circunstancial, assim não vendo o que simultaneamente transcende a pessoa e a época em causa. Com efeito, muito para além do singular perfil da pessoa de António Vieira e de todas as reais ou imaginárias particularidades da época, reflecte o projecto quinto-imperial uma aspiração que desde sempre esteve presente em todas as épocas e em todos os homens: a aspiração pela optimização ontológica do mundo existente, pela plena revelação do sentido ou verdade de todo o ser, pela suprema realização do homem, de cada um de nós.
Eis, essencialmente, a aspiração que António Vieira procurou cumprir – quer através da sua obra, quer através da sua própria vida. Ao compreendermos isto, poderemos ainda, decerto, ridicularizar, até à exaustão do riso, o projecto quinto-imperial. Importa contudo ter presente o seguinte: ao rirmo-nos de António Vieira, teremos também, por um mínimo de coerência, que nos rir de todos os grandes homens, desde logo, de todos os grandes filósofos, pois que também todos eles, de um modo mais ou menos assumido, de uma forma mais ou menos insistente, procuraram cumprir essa aspiração.
Efectivamente, quando Aristóteles, na esteira de Platão, nos dizia que todos os entes tendem para a optimização ontológica de si, para a sua suprema realização, estava já a assinalar esse trânsito do qual o projecto quinto-imperial é expressão. Todo o ser é trânsito para a verdade, para a plena revelação de si – eis o que Platão, Aristóteles e todos os outros grandes filósofos, pelo menos até Hegel, nos disseram. António Vieira nada nos disse de diferente. O seu projecto quinto-imperial é apenas a consagração desse trânsito: o trânsito no qual e pelo qual todo o ser se cumpre, o trânsito no qual e pelo qual todo o ser tende para a verdade, para a plena revelação de si, para a sua suprema realização. Essencialmente, o Quinto Império não é senão isso: a prefiguração da optimização ontológica do mundo existente.
Na nossa perspectiva, é à luz desse horizonte que António Vieira realiza toda a sua obra. Mesmo quando parece atender apenas às vicissitudes da sua época, Vieira nunca perde de vista esse horizonte. Daí, aliás, a razão de todo o seu empenhamento político – apesar do Quinto Império ser sobretudo um projecto espiritual, ele era também, enquanto realização histórica, humana e universal, um projecto político, mais exactamente, um projecto mediado por algumas realizações políticas. Só através destas se poderia aquele, em última instância, cumprir – uma vez que só através da paz terrena pode o homem, pode cada um de nós, disponibilizar-se para realizar enfim essa viagem que mais importa, na procura da mais estreme união com o absoluto ser divino, com o absoluto ser da verdade.
António Vieira é bastante claro a esse respeito. Por um lado, o Quinto Império é essencialmente um projecto de dimensão espiritual: ele visa consagrar a mais estreme união do homem, de cada um de nós, com Deus. E nisso ele se distingue, irredutivelmente, de todos os outros impérios, cuja motivação era essencialmente política ou, quanto muito, civilizacional. Por outro lado, porém, enquanto realização histórica, humana e universal, ele era também, como dissemos, um projecto de dimensão política. Daí todas as mediações terrenas que, segundo Vieira, seriam necessárias para que, por fim, o Quinto Império se cumprisse. Não há pois, por isso, nenhuma contradição entre o plano político e o plano espiritual. O primeiro realiza-se apenas em função do segundo. A inversão desta ordem significaria, aliás, a inteira perversão da natureza do projecto quinto-imperial. Não fosse o Quinto Império, muito mais do que apenas mais um outro Império, um Império outro. O Império Outro.
Sem comentários:
Enviar um comentário