A Águia, órgão do Movimento da Renascença Portuguesa, foi uma das mais importantes revistas do início do século XX em Portugal. No século XXI, a Nova Águia, órgão do MIL: Movimento Internacional Lusófono, tem sido cada vez mais reconhecida como "a única revista portuguesa de qualidade que, sem se envergonhar nem pedir desculpa, continua a reflectir sobre o pensamento português". 
Sede Editorial: Zéfiro - Edições e Actividades Culturais, Apartado 21 (2711-953 Sintra). 
Sede Institucional: MIL - Movimento Internacional Lusófono, Palácio da Independência, Largo de São Domingos, nº 11 (1150-320 Lisboa). 
Contactos: novaaguia@gmail.com ; 967044286. 

Donde vimos, para onde vamos...

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Ângelo Alves, in "A Corrente Idealistico-gnóstica do pensamento português contemporâneo".

Manuel Ferreira Patrício, in "A Vida como Projecto. Na senda de Ortega e Gasset".

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sábado, 26 de julho de 2008

Mais um texto para o 2º número da Revista...

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SERMÃO DO SAL A SI PRÓPRIO (e talvez também ao Padre António Vieira)
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Ana Paula Guimarães


Padre António Vieira:
Vós, diz Cristo, senhor nosso, falando aos prégadores, sois o sal da terra; e chama-lhe(s) sal da terra, porque quer que façam na terra o que faz o sal. O efeito do sal é impedir a corrupção…

Sal:
Impedir a corrupção? Claro! Quando mudar de casa, a primeira coisa que deve levar consigo é lenha e a segunda… sal. Se vier morar para Lisboa, inaugure a sua casa, pondo na despensa um pouco de sal, um pouco de azeite e uma moeda de prata. Deitar sal onde quiser impede a entrada do Diabo, sabia?

Padre António Vieira:
mas quando a terra se vê tão corrupta como está a nossa, havendo tantos nela que têm ofício de sal, qual será, ou qual pode ser a causa desta corrupção? Ou é porque o sal não salga, ou porque a terra não se deixa salgar.

Sal:
Salgar?! Eu cá por mim salgo, sim Senhor! Nem tenho dúvidas. Lá que a terra se não deixe abordar… isso é outra conversa. Quer uma prova de que até a terra se deixa salgar? É em terra que se faz fogo, não é? Pois oiça. Quando um agoiro assusta os aldeões, eles próprios deitam-me a mim, caríssimo sal, no lume e… dormem descansados. Além disso, saiba que sei salgar, desde sempre impedindo sustos por aí além; quando tiver medo, deite sal numa fogueira, antes de entrar a porta de casa e verá…
Outra prova ainda da minha eficácia: se alguém andar a murmurar e coscuvilhar sobre a sua vidinha, atire-me à lareira da sua casa e vai ver como essa pessoa se há-de calar.

Padre António Vieira:
Suposto pois que ou o sal não salgue ou a terra se não deixe salgar, que se há-de fazer a este sal e que se há-de fazer a esta terra?

Sal:
Prossiga espalhando sal por cima da terra… mas, cuidado, porque há quem diga que, se for sem querer, dá grande azar! Derramado, por assim dizer ‘de propósito’, não tem grande mal, ou até tem bem, como se viu já há pouco, com o fogo. E volto a acentuar esta minha conduta anti-corrupção, útil em todos os tempos. Azeite entornado dá enguiço. Ou é sinal de ralhos. Então? Que fazer? Experimente caminhar de costas voltadas para a chaminé ou para a janela e atire para trás das costas, sem olhar, uma mão-cheia de sal. Se for difícil desenvencilhar-se, treine esta fórmula: deite sal em cruz sobre o azeite alastrando pelo chão e profira: Quando este sal chegar ao mar, é que havemos de ralhar. Vai desenguiçar-se e viver sem zangas e raspanetes, pode ter a certeza.
E se, em vez de azeite, entornar tinta? Deite sal sobre ela, vá fazendo cruzes e dizendo: Em nome do Santíssimo Sacramento, males para fora e bens para dentro.
Minhas virtudes, não duvide, Senhor Padre. Tem cravos numa mão? Não lhe passou a maleita repousando em Carcavelos? Conforme consta – como descobriu Elisa Costa, membro do Instituto de Estudos de Literatura Tradicional (
http://www.ielt.org/) – terá descansado na Quinta da Alagoa, ou na Quinta de Nossa Senhora da Luz, no Junqueiro, em diversas ocasiões, entre 1647 e 1680.
Quer aqui ou ali, recomendo-lhe então que meta num papel ou num pano um número ímpar de pedras de sal e o deite à rua. Pois é. Cretino, acha? É verdade, eu bem sei, quem o apanhar ficará com os cravos, tem razão…
Espere! Já me lembro, opte por outra via de cura. Pegue em tantas pedrinhas de sal quantas o número deles, dos ditos cravos. Entre por uma porta, caminhe até ao forno aceso, atire-lhe essas pedras de sal para dentro, tape os ouvidos para não ouvir estalar e… saia por outra porta.
Quebranto? Deus me perdoe. Vou pregar o Padre-Nosso ao cura: Em nome do Padre, do Filho e do Espírito Santo. (Diga o nome da pessoa), tens quebranto, quem to deu, quem to daria, tire-to Deus e a Virgem Maria. S. João baptizou Cristo, Cristo baptizou S. João, Deus te ponha são, como estas palavras são. Em nome do Padre, do Filho e do Espírito Santo. Diga três vezes. No fim, deite três pingas de azeite num prato de água. Repita a oração outras tantas vezes. Deite mais três pingas. Outra vez a oração, não lhe faz mal, acredite. Siga um Padre-Nosso. Agarre numa mão-cheia de sal e vá vertendo, em cruz, no prato e siga proferindo: Se to deram por trás, acuda-te S. Brás e, se to deram pela frente, acuda-te Deus para sempre.

Padre António Vieira (insistindo):
Pois sim… Mas, ajude-me o sal, já que os peixes talvez não me oiçam, que se há-de fazer a esta terra?

Sal:
Refere-se à terra como se ela tivesse recebido em cima… fezes de bruxa!? Pois então, acudo-lhe. Sirvo para o bem. Atire com pedras e pedras de mim próprio e acenda-lhes o lume. E acontecerá ouvir-se um estrondo, arrebentando o rabo da dita mulheraça.
Não sabe se as fezes são, de facto, de bruxa!? Oiça, então: serão, nesse caso, amarelas como gema de ovo.

Padre António Vieira (remetendo para S. Mateus):
E se o sal perder a sua força, com que outra coisa se há-de salgar? Para nenhuma coisa mais fica servindo senão para se lançar fora e ser pisado dos homens.

Sal:
Pisado sem querer dá azar. Disso não se duvida.
E se, por puro acaso, uma qualquer pessoa não goste muito de si e lhe atirar à noite sal junto da porta… saiba que, se pisar esse sal, sofrerá desandâncias, isto é, desastres como, por exemplo, morrerem-lhe os porcos…
Tragédias são também causadas por salgas e/ou ressalgas e ainda por outros feitiços como, por exemplo, um saquinho branco com cruz preta dentro do qual residam três dentes de alho com alfinetes cravados também em cruz e sal; ou embrulhos com sal, pimenta em grão e cabelos; ou…ou...
Curiosamente, parecidos com estes feitiços mas com missões opostas, salvam-nos as arrelicas, conjunto de elementos pagãos, cristãos e amuletos, empregando sal para nos livrar a nós, humanos e a vós, bois, dos males que nos atormentam. Um exemplo de entre muitos sobre mim mesmo – Sal me chamo – recolhidos, aqui e ali, por Mestre Leite de Vasconcellos: saquinho de lã vermelha com arruda, alecrim, incenso e sal virgem. Atado numa cordinha na cabeça do boi, caindo-lhe na frente, livrá-lo-á de feitiçaria e inveja.
Ou então, coza num púcaro novo um sapo, alecrim, trevo de três folhas, pena de galo preto, arruda e aipo, junte três pedras de sal e leve tudo à meia-noite a uma encruzilhada e diga: Aqui te deixo este púcaro, por causa das maleitas e mal d’artifício que vem comigo, S. João Baptista. Volte para casa sem olhar para trás; caso contrário não tem virtude.
Se trouxer das suas viagens-p’los-longes roupa suja, cumpra a seguinte tarefa: depois de lhe dar uma bela lavadela, coloque-a num cesto, deite cinza por cima e, em seguida, água quente. Isto é, faça-lhe uma barrela. Note bem: se alguém passar sobre a cinza da fogueira em que se aqueceu a água da barrela, apanha-se ar ruim, o qual, porém, se evita, atirando uma mancheia de sal à cinza dizendo:

Aqui te boto sal bento
Não é por te desprezar,
É só para que Nosso Senhor nos livre
De tamanho mal.

Desprezo pelo elemento/alimento/condimento tão fundamental na nossa vida. Presente entre todos, do mais pobre ao mais rico, entre povo e reis... Posso ser barato; de facto, sou caro. Abençoado, dou sentido a matérias insípidas. Num conto tradicional chamam-me exactamente “sabor do sabor”:

Era um rei, que tinha três filhas. Uma era Silvana, outra era Madalena, outra era Não-sei-como. E pois ele era viúvo e estava só na brincadeira com as filhas, lá em casa. E depois, um dia lembrou-se de perguntar qual é que era delas que gostava mais deli…
e as duas primeiras responderam que gostavam tanto dele como o sangue dos seus braços.
E a última disse-lhe que adorava tanto o pai como a comida queria o sáli e depois o pai mandou-a matári.
Até que passado muito tempo e muitas peripécias, essa moça, em vez de ser morta, surge disfarçada de guardadêra de patos, servindo um jantar sem sal ao pai, que veio a reconhecer o pouco sabor da comida ensonsa… acabando por se desculpar… casando-a com o príncipe.
E por causa desta dica sobre comer insonso, recordo, de cor e salteado (como os bifezinhos na frigideira com alhinho, cebolinha e sal…zinho) uma décima que me tem – a mim, sal – escondido, derretido em água salgada, sempre presente secreto. Foi assim: dei, às tantas, origem a um mote disfarçado de adivinha. Não se sabe bem quando, em Silves, ouviu-se um velho cantar:

Eu sou fêmea de nação
Macho me querem fazer.
Hei-de-me deitar a afogar
P’ra fêmea tornar a ser.

1.
Em tempos fui água pura,
Fui coalhada ao calor,
No comer deito sabor
Mesmo assim em pedra dura.
Nos olhos ninguém me atura:
Causo grande aflição.
Rendo conto, rendo milhão
No reino de Portugal.
Já a mim vendem por sal
E eu sou fêmea de nação.

2.
Por comportas tive entrada,
Nunca mais tive saída
E p’ra fazê’la fugida
Logo fiquei imprisionada.
Fiquei em pedra formada
Que se deita no comer.
Quando me levam a vender
P´ra esses reinos ‘strangeiros
É por falta de dinheiro.
Macho me querem fazer.

3.
Tenho navios ingleses
Que me levam lá p’ra fora;
Levem-me já sem demora
Para acudir aos fregueses.
Paguem bem aos portugueses
Que me sabem fabricar,
Peçam bom tempo ao mar,
Meu navio não vá ao fundo,
Perde-se o tempero ao mundo,
Se me deixam afogar.

4.
Eu vou a meus arraiais
Onde estão duques, marqueses.
Donde eu falte muitas vezes
O comer insonso achais.
Dão por mim tantos metais
Donde me levam a vender!
Logo me põem a derreter
Dentro de algumas caldeiras,
Debaixo fazer fogueiras
P’ra fêmea tornar a ser.

Meu caro Padre António Vieira, ainda sobre comer insonso me vem agora uma questão à ideia: que tal salgar um pouco a língua assegurando assim um bom futuro à lusofonia?
Inspiremo-nos no sal cuidadosamente vertido sobre doze cascas de cebola, cada uma com o nome de cada mês do ano, colocadas, na noite de Consoada, em cima da mesa ou no chão. Auguremos o futuro. Às cascas que, no dia seguinte, de manhã, expuserem sal desfeito em água corresponderá chuva no respectivo mês. Àquelas em que o sal estiver inteiro equivalerá mês sem pluviosidade acentuada.
Previsão meteorológica, é certo. Como há-de ser o futuro de outro tempo que não o atmosférico?

Padre António Vieira:
(…) notícia dos tempos e sucessos futuros (…) esta nova e nunca ouvida história (…) As outras histórias contam as cousas passadas; esta promete dizer as que estão por vir. As outras trazem à memória aqueles sucessos públicos que viu o mundo; esta intenta manifestar ao mesmo mundo aqueles segredos ocultos e escuríssimos que não chega a penetrar o entendimento. Para tu seres como eu, ainda hás-de comer muito sal…

Sal:
Ensinou o Senhor Santo Padre a mim, seu vassalo, que O maior serviço que pode fazer um vassalo ao rei, é revelar-lhe os futuros, e senão há entre os vivos quem faça revelações, busque-se entre os sepultados e achar-se-á. Se não se quiser dar a esse trabalho árduo, verta água salgada num prato ao sol e quando, depois de coalhada ao calor, me tiver aos seus olhos, use-me, enquanto sal-vencendo-o-mal, para o que der… e vier.
Entre o seu século e o nosso ainda há muito a fazer. Não é isto farsa a mais digna de riso, se não fora tanto para chorar. (…) Já que o púlpito é teatro, e o sermão é comédia, sequer não faremos bem a figura? (…)
Louvai a Deus. (…) Ámen.

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