Naquela manhã o sol ia alternando com as nuvens, aquecendo as ruas e as casas que limitam a Feira da Ladra. As pessoas circulavam e algumas paravam, observando os artigos de ocasião que se espalhavam por ali.Um homem alto e saudável, de chapéu de palha, apregoava alto com uma voz sonora: "Vende-se orgulho! Vende-se orgulho!". Junto a si tinha uma manta estendida no chão com dezenas de frasquinhos pintados de várias cores e tonalidades. Uma pequena rolha de cortiça tapava cada um deles.Um grupo de jovens parou junto a ele e aproximaram-se observando atentamente as pinturas expostas nos pequenos frascos. Pelos seus comentários deviam ser estudantes de pintura e mostravam-se admirados com a mistura de cores e com as técnicas utilizadas nas composições decorativas.Uma senhora idosa aproximou-se e perguntou apontando para baixo: "Quanto custa cada frasquinho?""A senhora dá o que quiser, freguesa" Disse o homem.Um polícia chegou devagar observando curiosamente a senhora que escolhia criteriosamente um dos frasquinhos. Depois de se decidir por um em tons esverdeados, a senhora levantou-o em direcção à luz do sol e, agitando-o perguntou ao homem: "Mas isto não tem nada cá dentro!?"Desculpe minha senhora mas isso não é verdade. Este frasco está cheio do melhor orgulho que um português pode ter! E diga-me a senhora, já alguma vez sentiu orgulho de ser pertencente a este pequeno grande país?""Concerteza que sim, ora essa! Olhe, por exemplo quando a Rosinha ganhou aquela medalha de ouro lá no estrangeiro, até me vieram as lágrimas aos olhos. E temos ficado muitas vezes em primeiro lugar nos "Jogos Sem Fronteiras". Só fico triste é por não conseguirmos fazer novelas como as brasileiras".
Um velho que tomava atenção à conversa interveio nesse momento dizendo: "Balelas, só balelas! Essa conversa do orgulho é uma treta! Orgulho de quê? De sermos dos países mais atrasados e com menos nível de vida na Europa? Do nosso analfabetismo? Da nossa miscelânea racial? Ó amigo, e apontava para o vendedor de orgulho, o senhor safava-se melhor a vender "bufas de americanos".Os jovens riram-se em coro e até o polícia deu uma gargalhada divertido com a conversa, enquanto o vendedor olhava muito espantado para o velhote. De repente ele baixou-se e começou a procurar qualquer coisa dentro de um saco, donde retirou um frasco maior que os outros, pintado de cores douradas e brilhantes. Exibiu o frasco frente aos outros e o seu semblante mostrava uma satisfação contagiante."Aqui dentro deste frasco guardaram os meus antepassados, sucessivamente, o enorme potencial que essas gerações de audaciosos marinheiros foram acumulando no regresso de cada uma das suas viagens. Era uma prática comum entre os homens do povo, aqueles que pouco mais ganhavam que o seu sentimento de liberdade, em fazerem os relatos das suas viagens, entre amigos e em frente a frasquinhos como estes, que depois de tapados eram religiosamente guardados e passavam de geração em geração como relíquias familiares. Sendo eu um descendente de uma antiga família de marinheiros, ao ter conhecimento desta herança resolvi partilhá-la com aqueles que se mostrassem interessados".O polícia riu-se novamente e disse: " Então se esses frasquinhos são tão importantes para si, porque razão não os guarda?"Com um ar sério o homem rebuscou novamente dentro do saco e tirou um velho pergaminho com as margens já gastas pelo tempo. Desdobrou-o e mostrou-o a toda a gente. Em letras medievais lia-se claramente: "A Missão de Portugal".O velho ergeu o punho com um ar ameaçador. Os seus cabelos em desalinho e o tom agressivo da sua voz faziam lembrar a figura do Velho do Restelo. "De certeza que os sentimentos que o animam são os mesmos que verdadeiramente estavam por detrás dos descobrimentos. A sede de mais poder e mais riqueza já cegou muita gente!"
A velhota puxou da sua carteira, tirou duas moedas, e ao entregá-las ao homem do chapéu de palha disse :"Não vejo mal nenhum em querer ter poder e riqueza. O que é importante é não perder a sua própria identidade, não se transformar naquilo que nunca poderá ser. Não ser controlado por desejos fúteis, mas sim por aqueles que mais profundamente ardem dentro do peito.""Ora até que enfim que ouço alguém com um discurso sensato. Esta senhora ainda não destapou o frasquinho mas, apenas pela sua posse, já se nota a sabedoria nas suas palavras.""Mas você acredita mesmo nessa coisa dos portugueses terem uma missão a cumprir no mundo?"O homem dos frasquinhos fechou os olhos por um momento e depois olhou para o céu antes de começar a falar, como se procurasse inspiração para explicar algo que talvez não compreendesse muito bem."A história repete-se meu amigo. Temos portanto que estar bem atentos e preparados para saber reconhecer em cada momento o caminho a seguir. E, se naqueles tempos era necessário descobrir o exterior para completar os mapas e ligar o ocidente com o oriente, é hoje ainda necessário unir o norte com o sul e o exterior com o interior, até que todos os homens reconheçam o valor de todas as confluências, o nada que é tudo."Uma jovem lindíssima de pele morena e olhos verdes pegou numa das peças, mirou-a enquanto a rodava entre os dedos, e de repente, quase num movimento precipitado, destapou-a, inspirou levemente pelas narinas e ofereceu aos seus colegas dizendo: "Vejam só que belo aroma. Além de bonitos estes frascos contêm um perfume delicioso."O vendedor de orgulho olhava para eles calmamente de braços cruzados, um sorriso divertido estampava-se-lhe no rosto."Qual é o preço?" perguntou um jovem de cabelo encaracolado e jeans rotos. "É o que quiserem dar". "E se não quisermos dar nada?" desafiou o jovem. "Isso é convosco. O orgulho não tem preço."O jovem açambarcou três ou quatro frasquinhos, destapou um e guardou os outros no bolso da camisa. O polícia aproximou-se dele e quis cheirar também. Deu uma gargalhada antes de inalar sôfregamente o delicioso filtro. A senhora idosa destapou também o seu frasco e verificou que, apesar de não conter qualquer espécie de líquido, exalava um odor adocicado muito agradável.
"Orgulho-me muito de todos vós." Disse o homem que vendia orgulho. "A nossa curiosidade pelo desconhecido e a nossa capacidade de sonhar são as forças que impelem todas as nossas missões."Um dos jovens tirou uma guitarra do saco e dedilhou uma ária medieval. Alguém começou a entoar uma melodia de fado que se transformou rápidamente num coro, chamando a atenção dos curiosos que paravam para apreciar a cena.Já não havia mais frascos em cima da manta e o homem do orgulho cantava orgulhosamente. Depois os jovens fizeram-lhe um convite: "Gostávamos que viesse almoçar connosco."O homem dobrou a manta, olhou à sua volta e viu a velhota ainda a bater o pé na cadência da música. "Bem, vou andando." Disse ela, e abalou por cima do passeio quase com um jeito de dança. O velho seguiu-a sem dizer nada e sem olhar para ninguém.O homem que vendia orgulho virou-se para os jovens e disse : "Então? Vamos?" E lá foram à procura de uma tasca onde certamente iriam comer uns pastéis de bacalhau e beber uns copos de vinho enquanto falavam de velhas histórias de marinheiros.O polícia seguiu devagar pela rua abaixo a pensar em toda aquela gente enquanto assobiava baixinho o hino nacional.
João Martinho A. C. Rocha
Do livro de contos "Sonhos" Colectânea de Autores de Alhos Vedros, Edições CACAV 1999
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