Numa altura em que a revista Nova Águia pretende relançar o espírito de A Águia e do movimento da Renascença Portuguesa, deixamos aqui uma pequena homenagem a um dos homens que, no início do século XX, mais se empenhou em reformar e reformular a mentalidade portuguesa: Raul Proença.
“O remédio indica-o claramente o mal. Que fazer então? Pôr a sociedade portuguesa em contacto com o mundo moderno, fazê-la interessar pelo que interessa os homens lá de fora, dar-lhe o espírito actual, a cultura actual, sem perder nunca de vista, já se sabe, o ponto de vista nacional e as condições, os recursos e os fins nacionais. Temos de aplicar a nós mesmos, por nossa conta, esse espírito do nosso tempo, de que temos estado tão absolutamente alheados. Os problemas são variadíssimos: educativos, económicos, morais, literários, artísticos, financeiros, militares, coloniais. A escola, o livro, a revista, o panfleto, o manifesto, a conferência, a exposição, o inquérito, a viagem de informação, de estudo – tais são os meios que temos ao nosso alcance. Por eles diligenciaremos criar em Portugal estas duas coisas absolutamente novas: uma elite consciente, uma opinião pública esclarecida. § Eis o nosso fim, eis as nossas ideias. Daqui fazemos um apelo a todas as pessoas úteis, sem distinção de classes, que não desejem viver egoisticamente. Até aqui temos esperado tudo de todos, menos de nós mesmos; a nossa providência tem residido fora de nós. É preciso que nos habituemos à ideia que o progresso de uma nação se faz mais pelo esforço individual do que pela providências governativas. Torna-se, pois, mister chamar para a reorganização nacional todos aqueles a quem a política não pode ‘refranger’ os intuitos patrióticos, porque se não distraem no caminho e vão direitos ao fim. Repetimos: a situação é única na nossa história, e situações únicas requerem sacrifícios únicos – excessivos, superabundantes mesmo, se o quiserem. § Connosco devem, pois, colaborar, activamente, os que crêem. A descrença não pode desculpar a inacção. O futuro tem isto de bom: o ser imprevisível. Todos devemos, pois, arriscar a nossa acção, certos de que socialmente cumpriremos um dever e que individualmente a luta será para nós como um processo de autoterapêutica. Unamo-nos, pois, para fazer ao nosso país esta dádiva inestimável – uma alma que o ressuscite, e que o faça grande, não grande das passadas glórias, mas grande da dignidade dum povo que quer ser livre e que merece ser livre”.
Raul Proença, Manifesto da Renascença Portuguesa, 1911
Apontamento Biográfico
Raul Sangreman Proença nasceu no dia 10 de Maio de 1884, nas Caldas da Rainha. Enquanto pequeno, residiu em Alcobaça e fez o exame de Instrução Primária em Leiria. Frequentou o liceu em Coimbra e, mais tarde, transferiu-se para Lisboa. No Liceu do Carmo foi colega de Luís Câmara Reys (1885-1961) e de António Ferreira de Macedo (1887-1959).
Licenciou-se, em 1905, em Ciências Económicas e Financeiras pelo Instituto Industrial e Comercial de Lisboa. Depois disso, foi viver para Faro e leccionou na Escola Comercial da cidade mas, pouco tempo depois, voltou para Alcobaça. Regressará a Faro posteriormente. Em 1910, foi convidado, por António José de Almeida (1866-1929), a exercer o cargo de cônsul em Paris. Recusou tal função e, em Janeiro de 1911, foi nomeado 2º Conservador da Biblioteca Nacional. Mais tarde, em 1917, foi promovido a 1º Bibliotecário da Biblioteca Nacional.
Foi fundador do jornal O Republicano e, entre outros periódicos e revistas, foi colaborador de Círculo das Caldas, Democracia do Sul, O Heraldo, Semana Alcobacense, Província do Algarve, República, Vanguarda, A Águia, Alma Nacional, O Sindicalista, O Norte, Vida Portuguesa, Pela Grei, Diário de Lisboa, Seara Nova, O Século, ...
Pertenceu ao movimento da Renascença Portuguesa e foi fundador do grupo da Seara Nova e do grupo da Biblioteca Nacional.
De pendor político bastante vincado, Raul Proença mostrou-se sempre avesso ao Sidonismo e à Ditadura Militar. Será esta, aliás, que acabará por condená-lo, a partir de 1927, a um exílio, primeiramente em Madrid, e, depois em Paris. Nesta altura, viverá sobretudo de traduções e de artigos encomendados. A sua vida financeira e psicológica tornar-se-á assombrosa durante tal período. António Sérgio (1883-1969) é um dos seus amigos mais presentes. Regressa a Portugal, em Março de 1932, quando já está mentalmente bastante abalado. É internado no Hospital Conde de Ferreira, no Porto, no qual ficará internado um longo tempo. Vítima de broncopneumonia, morre no dia 20 de Maio de 1941.
Apontamento Crítico
Se, por um lado, se pode dizer que a obra de Raul Proença é caracterizada por uma matriz ético-política tão acentuada que não há lugar para outras questões, por outro lado, não nos podemos esquecer do seu envolvimento com os problemas filosóficos associados ao idealismo, ao realismo, ao eterno retorno (como sabemos, o autor estudou a doutrina de Friedrich Nietzsche (1844-1900) com o objectivo de a desconstruir e de criticar os determinismos que golpeiam a liberdade dos seres humanos), ao primado da razão, ao anti-intelectualismo ou do seu interesse pela religião (especificamente pelo cristianismo ético) e da sua actividade enquanto divulgador cultural. Polemista notório, para além de ter discutido acerca de questões políticas, Proença polemizou, igualmente, sobre literatura, filosofia, religião, biblioteconomia ou medicina com interlocutores como Júlio de Matos (1857-1923), Ana de Castro Osório (1872-1935), Ribera y Rovira (1880-1942), Ezequiel de Campos (1874-1965), Artur Bivar (1881-1946), Alfredo Pimenta (1882-1950), Padre Joaquim Alves Correia (1886-1951), Fidelino de Figueiredo (1889-1967), Afonso Bourbon e Meneses (1890-1948), entre muitos outros.
A sua obra, ainda hoje tão dispersa por jornais e revistas, apresenta-nos um autor profundamente motivado em discutir as questões da democracia e em criticar as acções que a 1ª República encetara em Portugal, sobretudo a decadência moral e social desencadeada pelos políticos que protagonizaram o governo caótico da década de 1910. A par disso, o nosso autor defende o socialismo democrático como solução das políticas enviesadas dos regimes ditatoriais e monárquicos. Nessa perspectiva, acreditava que o socialismo democrático, na medida em que defendia o parlamentarismo e repudiava o poder absoluto do Estado perante o povo, antevia-se como sistema governativo ideal.
É quase impossível falar de Raul Proença e não falar de António Sérgio. Em primeiro lugar, porque ambos pertencem à mesma geração (Proença é apenas 9 meses mais novo do que Sérgio), em segundo, porque partilhavam ideais muito comuns e, em terceiro, porque foram grandes amigos. Como se sabe, depois de ter lido um artigo de Raul Proença, António Sérgio envia-lhe uma carta a sugerir-lhe que se conhecessem pessoalmente. Para tal, marcam, depois, um encontro no Cais do Sodré.
Além de comungarem de uma ideologia filosófica, política e social muito semelhante, ambos vão comportar-se de igual forma relativamente ao rumo que Joaquim Teixeira de Pascoaes (1877-1952) dá à revista A Águia. Depois de ter participado da génese do movimento da Renascença Portuguesa, Proença afasta-se do mesmo, a partir do momento em que o poeta do Marão imprime a tal movimento um carácter estritamente saudosista e regressista.
Em termos filosóficos, o autor de O Eterno Retorno enquadra-se no idealismo realista que, na sua época, surgia como defesa de um conhecimento exaustivo e integral de todas as realidades sociais e objectivas que contextualizavam o sujeito humano na esfera da acção e como oposição ao materialismo, ao anarquismo e, de igual modo, ao integralismo. Na concepção proenciana, a apologia do realismo não significa a defesa do materialismo nem a desconsideração de um sistema idealista. Isto não significa que Raul Proença enverede por trilhos metafísicos, mas tão-só que a aceitação do idealismo é uma forma de escapar ao realismo materialista. Na sua opinião, este menosprezava ou mascarava os aspectos fundamentais da relação que o Homem estabelece na sociedade onde está inserido: a ética e a política. Mas não só. Para o nosso autor, o idealismo realista combatia, igualmente, a proliferação do intuicionismo e do anti-intelectualismo que, de França, por meio de Henri Bergson (1859-1941), chegava a Portugal e influenciava aqueles que mais ligados estavam ao saudosismo. De qualquer modo, na visão de Proença, assim como na de Sérgio também, o primado da Razão não implicava a recusa dos dados sensoriais e sentimentais. Razão e sentimento complementavam-se. Ambos se constituíam como portas de abertura para o conhecimento e, consequentemente, para a fundamentação da gnosiologia e da epistemologia.
Bibliografia Indicativa
Guia de Portugal, 1924 (coordenação)
O Eterno Retorno, 1938
Páginas de Política, 1972
Polémicas, 1988
A Águia, órgão do Movimento da Renascença Portuguesa, foi uma das mais importantes revistas do início do século XX em Portugal. No século XXI, a Nova Águia, órgão do MIL: Movimento Internacional Lusófono, tem sido cada vez mais reconhecida como "a única revista portuguesa de qualidade que, sem se envergonhar nem pedir desculpa, continua a reflectir sobre o pensamento português".
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1 comentário:
Tenho apreciado os seus artigos e este apreciei-o muito. Um grande Português, lúcido, moderno, de espinha direita e com ideais.
Tê-lo como adversário deve ter sido uma honra.
Cumprimentos.
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