Manifesto Verbalista Nhenga Soca
1.
- falo, logo existo (e insisto).
- quem não insiste não existe.
- os poetas não somente escrevem, mas também falam.
- as estátuas não falam, simplesmente as estátuas exalam o perfume que roubam dos passarinhos.
- os poetas falam (nhenga) como folhas novas que se abrem para a vida (soca).
- falar com vontade de viver.
- somos verbalistas.
- não queremos o silêncio das páginas fechadas de um livro.
- queremos falar para as grandes multidões.
- mas recusamos o recital tradicional.
- o discurso burguês. empostado. afetado. artificial. a sessão solene.
- somos a espontaneidade do quotidiano.
- somos o coloquial e a gíria criativa das pessoas.
- a poesia falada é democrática.
- todos podem entendê-la, até mesmo surdos e analfabetos.
- a poesia apenas escrita ou até mesmo editada em forma de livro, torna-se elitista.
- o livro, entretanto, continua sendo necessário e imprescindível para registrar as conquistas culturais da humanidade.
- para a poesia, entretanto, o livro não é suficiente e quase sempre é um túmulo.
- sabemos das dificuldades de distribuição do livro no Brasil e nos países de língua portuguesa, especialmente os livros de poesia, em virtude do baixo poder aquisitivo da população, dos altos preços de venda, além da falta de hábito, de interesse e de tempo das pessoas, da deficiente divulgação dos títulos e da falta de reserva de mercado para o autor nacional e da divulgação excessiva dos best-sellers estrangeiros.
- por tudo isso e ainda pela concorrência desleal da televisão, que deforma e tenta aniquilar a produção cultural independente e autêntica.
- portanto a verdadeira cultura poética nacional e acessível às grandes massas agora se faz com a língua insinuante dos poetas verbalistas.
- os poetas não aceitam mais o destino trágico.
- os poetas amam a vida e não querem mais morrer tuberculosos ou aidéticos.
- hoje desejamos ardentemente participar da tragédia de estar vivo em meio à plena desgraça social de nosso país.
- abaixo a camisinha (de força) da censura da vida.
- somos sonhadores. os poetas sempre o serão.
- não mais lamentamos passivamente a indiferença da humanidade.
- defendemos nosso sonho diante de todos.
2.
- não descobrimos a poesia falada na década de 80.
- desde a Grécia os poetas declamam poemas para o público.
- os trovadores na idade média falavam nos burgos do lado de fora dos castelos.
- e os poemas se propagavam através da tradição oral.
- em nosso século, os cordelistas recuperaram a tradição medieval.
- historicamente a poesia verbalista sempre teve seus arautos.
- no século XVI, o jesuíta José de Anchieta, escrevia na areia da praia e recitava para as ondas do mar.
- mais tarde Castro Alves declamava para as multidões escravizadas pelo modelo colonialista, durante a campanha abolicionista.
- o poeta futurista Maiakovski abriu caminho para a absorção da linguagem corrente das pessoas e a abertura para as ruas, falando nos teatros, nos estádios de futebol e nos sindicatos.
- Pablo Neruda declamava para os soldados em marcha.
- Vinicius de Moraes busca a música popular e canta e declama para o público uma poesia enriquecida por uma dimensão coletiva, chegando até mesmo a gravar discos de poesia.
- entretanto com o advento do movimento modernista de 1922, a poesia falada entrou em franca decadência, em virtude da tenacidade com que combateram o verbalismo oco dos poetas parnasianos, em evidência na época.
- entretanto não houve nenhuma atitude ativa, por parte dos modernistas no sentido de defender especificamente a poesia falada.
- permaneceram dentro dos salões, falando apenas para a burguesia.
- o próprio Mário de Andrade (*) lamentou que os modernistas não tivessem marchado com as multidões, esquecendo, portanto, de "buscar o aprimoramento político social do homem. ficaram apenas camuflados em técnicos de vida, espiando a multidão passar. aos espiões nunca foi necessária essa liberdade pela qual tanto se grita. nos períodos de maior escravização do indivíduo, Grécia, Egito, artes e ciências não deixaram de florescer. será que a liberdade é uma bobagem? será que o direito é uma bobagem? a vida humana é que é alguma coisa a mais que ciências, artes e profissões. e é nessa vida que a liberdade e o direito dos homens tem um sentido. a liberdade não é um prêmio, é uma sanção. que há de vir."
- com isso o movimento modernista abriu caminho para que os concretistas e os poetas (?) do poema-processo emudecessem totalmente a poesia, buscando apenas o efeito visual da palavra e até mesmo rompendo com ela, e com a estrutura sintática do discurso.
- era o abandono definitivo das multidões e da vida.
- deixando finalmente de ser poesia para ser apenas um sofisticado quadro na parede, para entretenimento dos nossos inúmeros colonizadores.
- na década de 70 surgem algumas escassas manifestações faladas, como decorrência de lançamentos de livros independentes, objetivo principal da denominada geração mimeógrafo.
- foram poetas que escreviam para serem publicados e, quando lançavam seus livros, alguns deles faziam uma improvisada, desajeitada e irresponsável leitura dos seus próprios poemas, o que acabava por afastar definitivamente qualquer espectador ainda interessado numa arte poética tecnicamente bem desenvolvida.
- apesar do esforço bem intencionado para levar a poesia ao grande público, vendendo suas produções independentes de mão em mão e até mesmo buscando renovar a linguagem, incorporando as expressões coloquiais, tal como no denominado poema-piada, buscando, enfim, uma nova poética. deixaram, entretanto, de desenvolver a arte poética verdadeiramente verbalista, isto é, uma declamatória inovadora, despojada, consciente de seu potencial para atingir realmente o grande público.
3.
- na década de 80, surge um movimento realmente verbalista: a Feira de Poesia Independente, na Cinelândia na cidade do Rio de Janeiro.
- a poesia falada toma conta finalmente das ruas e das praças.
- durante o período em que a Feira esteve em atividade (1980 a 1983) os poetas do Rio de Janeiro tiveram oportunidade de soltar o verbo e expor para o o público seus poemas, até então engavetados ou engasgados na garganta, durante a longa noite ditatorial e autoritária da década de 70.
- nesse período surgem diversos grupos e movimentos tais como:
Balkão Poético ("Casa do Estudante Universitário") - Grupo Poça d'Água - Projeto Cultural Passa na Praça que a Poesia te Abraça - Grupo Anônimo de Cultura - Jograrte - Revista Verso Reverso - Cadernos Oficina - Projeto Poesia na Praia - As Noites Poetanas - Gang do Prazer - Grupo Folhas & Ervas - Viva a Poesia (Niterói) - Grupo Teatrote - Grupo Quinta Estação - Grupo Utopicus (Duque de Caxias) - Grupo Panela de Pressão e outros grupos na região do Grande Rio, sem falar na explosão ocorrida também em outros estados.
4.
- a poesia falada, portanto, não pode ser registrada apenas através dos livros de poesia.
- necessitamos do registro eletrônico da estética verbalista. o disco. a fita cassete. o vídeo. o cinema.
- as performances verbalistas precisam ser preservadas.
- somente dessa maneira nossa memória pode ser assegurada.
5.
- a poesia falada agora tem um público, cada vez mais numeroso.
- todo este público tem sido produzido exclusivamente através da atuação dinâmica dos poetas verbalistas.
- nesta década de 80, os poetas têm falado nas praças, nos bares, nos ônibus, nas barcas, nos bondes, nos trens, nas estações rodoviárias, nos clubes, nas escolas, nos cine-clubes, nos teatros, no metrô e até mesmo nas escadas rolantes.
- entretanto é necessário profissionalizar o poeta verbalista promovendo recitais em bares, teatros, casas noturnas, clubes, faculdades, boates, cinemas e cine-clubes, assim como construir teatros exclusivos para a realização de recitais de poesia.
- queremos também a criação de projetos que patrocinem o declamador que utiliza espaços livres, tais como praças ou escolas.
- para o surgimento de uma nova geração de poetas verbalistas é necessário que as escolas primárias incluam em seus currículos a recitação de poesia em sala de aula, com apresentação, inclusive, de poetas verbalistas inovadores.
- e como, consequência natural, requerer o registro de declamador no cadastro de profissões autônomas.
6.
- a recitação inovadora se caracteriza pela maior versatilidade do declamador, que evita o uso de roupas solenes e cria um espetáculo não pomposo, mais espontâneo.
- a representação é dinâmica e busca uma teatralidade despojada, sem marcações rígidas.
- usa plenamente todas as partes do corpo e utiliza todo o espaço disponível do ambiente escolhido.
- em oposição à linguagem erudita, utiliza a fala corrente quotidiana e popular.
- enfim tudo é necessário, desde que facilite a aproximação com as pessoas, a comunicação e o despertar da sensibilidade e da emoção, base maior de toda a arte.
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- somos verbalistas. mas não queremos rasgar livros em praça pública.
- o poeta calado agora é um poeta morto.
- mas ainda é cedo, todos podemos ressuscitar.
- basta abrir a boca e utilizar plenamente o nosso corpo e o espaço disponível.
- não desanimar diante:
- das adversidades.
- da indiferença do público.
- dos espaços difíceis.
- falar até mesmo diante dos despenhadeiros.
- falar descontraidamente para o público.
- buscar maior proximidade.
- incorporar na linguagem, gírias, corruptelas, sons onomatopéicos. palavrões, neologismos, tudo aquilo que for utilizado na fala das pessoas.
- o quotidiano é a base maior de inspiração do poeta.
- mas não basta falar poemas.
- é necessário representar, declamar, produzir um espetáculo.
- o poeta é também um artista do palco.
- não somos leitores de poesia.
- somos declamadores.
- poetas verbalistas inovadores.
Rio de Janeiro, 7 de julho de 1991
(98º Aniversário de Nascmento de Vladimir Constantinovitch Maiakovski)
Comissão de Redação:
Douglas Carrara ("Boletim da Banca do Pó-etá") - Costa K - Luiz Sant'anna - Rita Maria de Lacerda ("As Noites Poetanas") e Nostra Kemerich
Poetas Participantes:
Sandro Prado - Eduardo Ribeiro ("Revista Arrulho") - Zé Cordeiro - Celso de Alencar (SP) - Odila de Souza Lima Tolentino - Sandra Rita Fernandes - Rosângela de Carvalho - Francisco Terra ("Grupo Folhas & Ervas") - Ona Gaia ("Grupo Folhas & Ervas") - Jania Cordeiro ("Boletim da Banca do Pó-etá") - Evanir Nunes ("Revista Verso Reverso") - Horacio de Souza ("Revista Engrenagem de Poesia") - Marcio Libar ("Grupo Anônimo de Cultura") - João Carlos Artigos ("Grupo Anônimo de Cultura") - Val Santos - Ray Lima (RJ-RN) - Da Silva (RJ) e Gijo (MG).
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(*) ANDRADE, Mário de:
1942 - O Movimento Modernista - Ed. Casa do Estudante do Brasil - Rio de Janeiro (RJ) - Brasil.
http://www.bchicomendes.com/dcarrara/nhenga.htm
1 comentário:
Fiz ranger as folhas de jornal
abrindo-lhes as pálpebras piscantes.
E logo
de cada fronteira distante
subiu um cheiro de pólvora
perseguindo-me até em casa.
Nestes últimos vinte anos
nada de novo há
no rugir das tempestades.
Não estamos alegres,
é certo,
mas também por que razão
haveríamos de ficar tristes?
O mar da história
é agitado.
As ameaças
e as guerras
havemos de atravessá-las,
rompê-las ao meio,
cortando-as
como uma quilha corta
as ondas.
Maiakovski
Tradução de Augusto de Campos
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