“Sei apenas que esse silêncio se preenche de tudo o que não sei dizer nem sobretudo me apetece dizer. Como uma rede que sustivesse todas as impurezas, o fio da água passa e a sua pureza me comove e só ela me existe. (...) E é como se eu próprio me evolasse com essa tarde e de mim ficasse o que útil e necessário me sustentasse o viver. Tudo tão pouco – que é que resta sempre de uma vida humana? Mesmo a dos heróis, dos grandes génios da arte e do saber. Depositaram a grandeza que foi sua, o que lhes fica é o nada que os sustenta, a miséria de um corpo que se extingue. Toda a convulsão de uma vida, aguentada agora com uma breve ideia, um frágil apoio, o vazio de si. A vida realiza-se multiplicadamente com a realização de quem a realiza. Com esse nada ou esse tudo se colabora na sua diversificação. Estou só – estás só. Não penses. Não fales. És em ti apenas o máximo de ti. Qualquer coisa mais alta do que tu te assumiu e rejeitou como a árvore que se poda para crescer. (...) O que te distingue e oprime é o pensamento que a pedra não tem para se executar como pedra. E as estrelas, e os animais. Funda aí a tua grandeza se quiseres, mas que reconheças e aceites a grandeza que te excede. Há uma palavra qualquer que deve poder dizer isso, não a sabes – e porque queres sabê-la? É a palavra que conhece o mistério e que o mistério conhece – não é tua. De ti é apenas o silêncio sem mais e o eco de uma música em que ele se reabsorva”.
Vergílio Ferreira, Para Sempre
Apontamento Biográfico
Vergílio António Ferreira, vulgo Vergílio Ferreira, nasceu no dia 28 de Janeiro de 1916 em Melo (Gouveia). Se fosse vivo, faria hoje 92 anos.
Vergílio passa praticamente toda a infância na região da Serra da Estrela, ao cuidado das suas tias maternas, já que os seus pais (António Augusto Ferreira e Josefa Ferreira) haviam emigrado para os Estados Unidos da América quando ele tinha apenas 4 anos. Aos dez, entra para o Seminário do Fundão e permanece por lá até aos dezasseis. Termina os estudos secundários no Liceu da Guarda e, logo em seguida, frequenta a Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. Em 1940, licencia-se em Filologia Clássica e passa a ser professor de Português e Latim. Termina o estágio, em 1942, no Liceu D. João III, em Coimbra, e leccionará, entre outras cidades, em Faro, em Bragança e em Évora. Do início da década de 60 até aos fins dos anos 70, altura em que se reforma, lecciona no Liceu Camões, em Lisboa A sua vida será dedicada essencialmente ao ensino e à escrita. Morre, no dia 1 de Março de 1996, em Lisboa, e é sepultado em Melo.
Apontamento Crítico
Dentre os autores portugueses, poder-se-á dizer que Vergílio Ferreira é aquele que mais explora a temática do existencialismo, embora, como o próprio escreve em Espaço do Invisível II, nunca se tivesse assumido como existencialista. Se, nas suas primeiras obras, se dedica ao neorealismo, não tardará a embrenhar-se naquilo que conhecemos como existencialismo francês (aprofundado sobretudo por André Malraux, Jean-Paul Sartre e Albert Camus). De qualquer forma, o romancista português é pioneiro em algumas categorias desta corrente filosófica.
Em quase todos os seus livros, Vergílio questiona-se acerca do sentido do homem e da humanidade (da sua existência), do vazio, do nada e da solidão. Mas não só. O autor interroga-se sobre o abandono ou a fuga que o ser divino fez em relação aos homens, ao mundo que criou. No fundo, as suas personagens (muitas vezes inspiradas em si próprio – relembremos a Manhã Submersa - ou em pessoas que o rodearam ao longo do seu percurso) deparam-se com uma vida ausente de sentido, com um caminho onde não se vislumbra uma luz ao fundo do túnel. Esperam-nas somente o vazio e a solidão ou, por momentos, uma alegria breve. De todo o modo, na linha do existencialismo francês, Vergílio Ferreira acredita que o Homem é, em si e pessoalmente, um valor; é dono de uma liberdade incondicional que não pode ser colocada em causa pela roda viva do dia-a-dia, pelos desesperos metafísicos que o atormentam, pelo sentido da perda de uma dimensão divina. Afinal, a partir do momento em que forem conhecidos e revelados (assim como se sugere em Aparição) os limites da condição humana, é possível aspirar-se a uma realização integral do Homem, do Eu (não apenas de um ponto de vista individual mas, essencialmente, de um ponto de vista que é relativo a todos os homens, ao Homem, à humanidade).
Embora não descure a discussão dos problemas sociais, económicos e culturais que assolam as sociedades (especificamente aqueles que ameaçavam o progresso de Portugal durante a ditadura salazarista) e que, de certo modo, são mais explorados e questionados nas suas primeiras obras, quando tinha uma interlocução maior com o neorealismo, o que o preocupa verdadeiramente é o Eu mais profundo do ser humano, é a relação do homem consigo próprio, com um mundo absolutamente humano e terreno, do qual ele não pode nem quer escapar, afinal, é ele que lhe concede o sentido para o seu questionamento existencial.
Bibliografia Indicativa
Ficção: O Caminho Fica Longe (1943), Onde Tudo Vai Morrendo (1944), Vagão J (1946), Mudança (1949), A Face Sangrenta (1953), Manhã Submersa (1953), Apelo da Noite (1963), Aparição (1959), Cântico Final (1960), Estrela Polar (1962), Alegria Breve (1965), Nítido Nulo (1971), Apenas Homens (1972), Rápida, a Sombra (1974), Contos (1976), Signo Sinal (1979), Para Sempre (1983), Uma Esplanada sobre o Mar (1986), Até ao Fim (1987), Em Nome da Terra (1990), Na tua Face (1993), Cartas a Sandra (1996)
Ensaios: Sobre o Humorismo de Eça de Queirós (1943), Do Mundo Original (1957), Carta ao Futuro (1958), Da Fenomenologia a Sartre (1963), Interrogação ao Destino, Malraux (1963), Espaço do Invisível I (1965), Invocação ao meu Corpo (1969), Espaço do Invisível II (1976), Espaço do Invisível III (1977), Um Escritor Apresenta-se (1981), Espaço do Invisível IV (1987)
Diários: Conta-Corrente I (1980), Conta-Corrente II (1981), Conta-Corrente III (1983), Conta-Corrente IV (1986), Conta-Corrente V (1987), Pensar (1992), Conta-Corrente I - Nova Série (1993), Conta-Corrente II - Nova Série (1993), Conta-Corrente III - Nova Série (1994), Pensar (1992), Conta-Corrente IV - Nova Série (1994)
A Águia, órgão do Movimento da Renascença Portuguesa, foi uma das mais importantes revistas do início do século XX em Portugal. No século XXI, a Nova Águia, órgão do MIL: Movimento Internacional Lusófono, tem sido cada vez mais reconhecida como "a única revista portuguesa de qualidade que, sem se envergonhar nem pedir desculpa, continua a reflectir sobre o pensamento português".
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