É mais do que curioso que o último poema escrito em
nome de Álvaro de Campos tenha sido “Todas as cartas de amor são / Ridículas”,
e não foi certamente por acaso que o poema saiu na sua voz, com o seu ritmo e a
sua emoção. Supõe-se que as cartas de amor inspiradoras do poema foram aquelas
que Fernando Pessoa escreveu a Ofélia Queiroz e sabe-se que Campos, sempre
impetuoso e por vezes malicioso, intervinha nessa correspondência, inserindo
comentários parentéticos nas cartas de Fernando e chegando a escrever uma carta
inteira, em que ofereceu conselhos à namorada. Sugiro, no entanto, que todas aquelas cartas de amor ridículas
partiam de Álvaro de Campos. Ou melhor: se não existisse o engenheiro-poeta,
Fernando Pessoa não conseguiria ter escrito nenhuma carta a Ofélia Queiroz, nem
ter namorado com ela. Proponho que, sem Álvaro de Campos, Pessoa também não
poderia ter defendido o direito de António Botto e de Raul Leal à sua
homossexualidade. Como talvez não conseguisse ter tido a coragem — a chutzpah — para se opor com veemência,
na primeira página do Diário de Lisboa,
a um projecto de lei predestinado a ser aprovado pela assembleia-fantoche de
António de Oliveira Salazar. Refiro-me à lei contra as associações secretas,
aprovada por unanimidade em Abril de 1935.
A minha proposta é simplesmente esta: a poesia, tal
como se realizou em Álvaro de Campos, todo ele um grande poema, transformou
Fernando Pessoa.
(excerto)