Pinharanda Gomes - A ideia de uma “filosofia em sentido lato” causa alguma perplexidade, salvo se a entendermos como paráfrase do termo septivio, caro à Escolástica medieval e constituído pelo organon de toda as ciências ou saberes, o saber enciclopédico ou universal arrumado nos cursos do trivio e do quadrívio. Todavia, o saber enciclopédico é muito mais um fruto da filosofia do que a filosofia propriamente dita. Enquanto aquele abrange a prática das ciências ao modo iluminista, pelo que da respectiva prática melhor se predica o adjectivo sábio (o francês “savant” parece ter gozado de prestigiada aura no ciclo do iluminismo), a filosofia mostra o carismático pudor de ainda não saber o todo de tudo, mesmo que aceda, ou vá acedendo, a algum grau de saber. Como se diz no adágio paradoxal, se sabe demais já não é filosofia. Pode sair da via ignorantiae e requerer o lugar na sedes illustrata, que ilustra, ou luz.
Em contraste, a filosofia é mendicante ou, por andar à procura, ou do
saber, ou da sabedoria. Mendiga descalça, isto é, sem defesa, na ascese do que
procura. Por isso, e sendo claro e universalmente aceite que a palavra todos a
recebemos da língua grega, preferimos a definição considerada banal ou trivial,
que se faz mediante a figura do truísmo ou da tautologia, definindo o sujeito,
pondo o seu nome no lugar do predicado: filosofia é filosofia.
Entendemos que a definição pura e casta é a iniciática grega, que
podemos transliterar no prolóquio que se lê: “Filosofia é o amor da sabedoria”.
O princípio da filosofia é o amor, a causa final desse amor é a Sabedoria. E
que é a Sabedoria? Se soubéssemos objectivamente e sem equívoco, a Filosofia já
não seria necessária. Com efeito, o saber ainda não é sabedoria. No saber cabe
o conhecimento de todas as disciplinas triviais e quadriviais ou facultativas,
abrangendo-as num sistema dos saberes ou ciências, mas a sabedoria transcende o
saber, imerge no conhecimento do que não vemos, nem ouvimos, nem palpamos, mas
se nos propõe como o fim dos fins, a causa final absoluta, de onde ela não
depender unicamente do conhecer as coisas ou saber delas, o que são, como são,
e para que são, no âmbito da positividade ou da realidade física, mas anelar
pelo que designaremos por apetência espiritual, vértice da dialogia pensamento
/ movimento, a Sapiência ou Sabedoria, que já subiu da especulação para a
contemplação.
O que o aristotelismo, secular magistério da Escolástica, denominou de protê philosphia (filosofia primeira)
constitui a dinâmica movente do itinerário que, de um ponto de vista existencial e imediato, viaja em exercícios de
discernimento que levam, não apenas ao conhecimento dos particulares, e dos
relativos, mas movem o espírito para além disso, para o absoluto. A esta luz, a
filosofia interroga os enigmas e a Sabedoria ou Sapiência ilumina-os,
protegendo-a da queda em doutrinas incertas. O princípio da filosofia é o amor,
e no que à Sapiência se refere, o princípio é o temor (seja lá o que isto for)
do divino (Prov., 1, 7), por excelência a altíssima causa.
Continua válida a primacial definição segundo qual, em resumo, a
filosofia é a procura das primeiras causas e dos primeiros princípios, ou, no
latim escolástico, a “scientia rerum
omnium per altíssimas causas”, conhecer toda a realidade pelas causas mais
elevadas.
Considera-se evidente o gnoma de Álvaro Ribeiro: “sofia é o
conhecimento especulativo absoluto”, e “a filosofia é o esforço para esse
conhecimento”. A causa última da filosofia é a Sofia, que envolve a coerência
ética do viver e do filosofar em simultâneo.
Ora, a filosofia está para além de ser apenas mais uma espécie de
literatura. Ela não obriga o filósofo a ser escritor, nem editor, pois a
reflexão filosófica constitui um mistério pessoal, questionado e vivido mesmo
na solidão, por qualquer filósofo solitário e oculto, que elabore a sua via
sapiencial, que pode exprimir segundo um ético modo de vida, sem qualquer outra
explicação.
O nome completo de Sapiência é Sophia
protê , primeira sabedoria, a da visão unívoca (conceito de José Marinho),
a visão da verdade como se estivesse dentro desta, e não fora, num ser de
embebência do amador no amado, cujo nome não se profere por inefável. Ao saber
das ciências apraz a certeza, ao da filosofia apraz a verdade, que é também
caminho e vida.
(excerto)