Na esteira de mais de uma dúzia de obras
publicadas nesta última década sobre Portugal e a sua tradição cultural
e filosófica, ora em geral ora sobre alguns autores em particular ,
série iniciada, auspiciosamente, com o premiado ensaio Portugal. Ser e
Representação, de 1995, ofereceu-nos, Miguel Real, mais uma obra com o
sugestivo título de A Vocação Histórica de Portugal. Desde logo
pelo título mas, sobretudo, pelo conteúdo, esta obra retoma uma outra
que, também aqui, nas páginas da NOVA ÁGUIA, no seu primeiro número,
destacámos . Referimo-nos à obra A Morte de Portugal, de 2007.
Nesta, diagnosticava o autor “os quatro complexos culturais por que
Portugal se foi concebendo a si próprio ao longo de 800 anos de
História”. O primeiro designa-o como o “complexo viriatino” – por ele se
denota a alegada “origem exemplar de Portugal” . O segundo é o
“complexo vieirino” – por ele se denota o alegado estatuto de Portugal
como “nação superior” . Contrapolar a este é o terceiro complexo, que
designa como o “complexo pombalino” – por ele, ao invés, se denota o
alegado estatuto de Portugal como “nação inferior” . Resultante da
contrapolaridade destes dois últimos, mas ainda em referência ao
primeiro, indica o autor um quarto, que designa como o “complexo
canibalista” . Por este, “não temos feito história da cultura com o
pensamento, mas com o sangue, sustentando-nos antropofagicamente do
corpo do adversário”.
Daí, enfim, o impiedoso retrato que Miguel Real fez, nessa obra, do
Portugal de hoje: “O Portugal desenhado pelos quatro complexos acima
enunciados encontra-se moribundo, submerso pela avalanche de costumes
liberais e americanos (…).”; “Mistura de complexo pombalino com um
arreigado individualismo americano, o projecto político português
caracteriza-se hoje, nos comecinhos do século XXI, pela exaltação
unidimensional do homem técnico, o homem-eficiente, o
homem-contabilista, o homem-robótico, desprovido de consciência
histórica global (…).”; “É um novo Portugal que está nascendo, sem
sublimidade, sem espiritualidade, sem projecto superior às suas forças e
à sua dimensão (…), o Portugal dos pequeninos (…). ”. Em suma, somos
hoje, como conclui, uma “canina imitação do pior da Europa”.
Nesta obra, A Vocação Histórica de Portugal, esse diagnóstico não se alterou propriamente. Mas, se na obra A Morte de Portugal
esse era ou pelo menos parecia ser um diagnóstico sem esperança, aqui,
ao invés, há um Horizonte que se abre, um “novo espaço histórico a
criar” – como escreve Miguel Real, logo na apresentação da obra: “Assim,
contra a tese de Jorge Borges de Macedo (…), considera-se não existir
um destino histórico para Portugal, antes uma vocação histórica segundo a
vontade das suas elites e a tendência conjuntural europeia e
internacional. A vocação histórica de Portugal, hoje, à entrada do
século XXI, é, incontestavelmente, a de cruzar a nova experiência
europeia com a antiga provação imperial, gerando um novo e exemplar
espaço político internacional de igualdade e prosperidade – a Lusofonia.
Este novo espaço é, hoje, para o futuro de Portugal, mais importante do
que o espaço europeu”. Eis, em suma, a tese que Miguel Real desenvolve
ao longo de três capítulos.
No primeiro deles, intitulado “O Espírito da Europa”, faz, Miguel Real,
um tão grande quanto justo elogio ao espírito europeu, o que em nada
colide com a posição de princípio pró-lusófona. É, de resto, um elogio
pertinente, tanto mais porque é contra-corrente, podendo até ser, pelo
menos em parte, ser visto como “politicamente incorrecto”. Com efeito,
Miguel Real defende, expressamente, que “outro continente não existe com
tão grandiloquente e realizador passado” – por isso, “deve a Europa
respeitar e orgulhar-se dos seus feitos passados”. Como concretiza,
“nenhum outro continente teve Platão e Galileu, Aristóteles e Copérnico,
Leibniz e Newton, Kant e Einstein”. E daí “a grande, grande diferença
entre a Europa e os restantes continentes”: “a Europa é o continente da
cultura”, “o continente que transformou o animal homem no homem humano”.
Como escreveu ainda Miguel Real, a fechar o ensaio inicial do primeiro
capítulo: “nunca a humanidade do homem tão alto se elevou quanto na
Europa, o genuíno e autêntico continente da única forma mentis que
abarca a totalidade da humanidade”.
Isso deve-se, desde logo, como refere a abrir o ensaio seguinte “O
decálogo civilizacional da Europa”, a quatro primados: “o primado da
Cidade (Polis) sobre a Horda e a Tribo”, “o primado do Direito (Jus)
sobre a Tradição”, “o primado da Ética (Ethos) sobre o Interesse” e,
finalmente, “o primado da Razão sobre o Mito e a Magia”. Por via desses
quatro primados e de outros factores – como, em particular, “a separação
entre o Estado e a Religião”, “a criação do Sistema Democrático” e a
“industrialização do mundo” –, conclui Miguel Real: “Nenhum outro
continente pode apresentar tão alto sistema de valores e realizações
operados para o bem e o progresso humanístico da humanidade no seu
conjunto. Os valores culturais asiáticos e árabes, centrados na
religião, e africanos e sul-americanos, centrados no tribalismo,
estatuem-se como menores (e, até, por vezes insignificantes) para a
totalidade do mundo se comparados com a criação política, filosófica,
religiosa, estética, científica, social e económica europeia.”
Contudo, como defende no ensaio seguinte, com o título de “A Decadência
da Europa”: “pela primeira vez em três mil anos, a Europa habita o
panteão dos povos e territórios que não fazem História, antes a
contemplam, vendo-a passar ao longe, a Oeste e a Este”;
“tecnologicamente (que é o actual padrão de medida do progresso), a
Europa parou na II Guerra Mundial”, passando a ser “internamente vista
como um apêndice dos Estados Unidos da América”. Por tudo isso, como
conclui Miguel Real: “o europeu de hoje é um cidadão conformista,
acrítico, por vezes mesmo acéfalo, pasto de programas imbecis de
televisão, de revistas fúteis, de campeonatos nacionalistas de futebol,
adorador dos mais medíocres bezerros de ouro (políticos, futebolistas…),
um cidadão movido pelo interesse, desprovido de sonho e transcendência.
A Europa é hoje um continente cego guiado por políticos cegos./ Assim,
nenhuma forma de vida é criticada ou asperamente excluída da cidade. Na
Europa, hoje, o espírito nómada da aventura e da viagem tornou-se um
modismo experimental, uma ânsia da novidade, do exótico, do insólito, do
selvagem, do fantástico, num imoral cruzamento entre pornografia e
misticismo, como a arte e, dentro desta, a literatura de mercado bem
revela.”.
Não obstante este diagnóstico, que o próprio assume como “muito cruel”,
Miguel Real defende no ensaio que se segue e que encerra o primeiro
capítulo, intitulado “Esperança na ressurreição da Europa”, que,
precisamente, “a esperança na possibilidade de uma futura ressurreição
europeia não deve ser abandonada”. E aqui assumimos a divergência maior
relativamente a Miguel Real. Ao contrário dele, nós não temos a menor
“esperança na ressurreição da Europa”. Falamos, em particular, da União
Europeia, enquanto alegada consagração política deste continente. Com
efeito, ainda que hoje isso pareça fazer parte de uma história hoje já
muito distante, o grande “cimento” da construção da União Europeia foi a
ameaça que o bloco soviético, que, como sabemos, se estendeu a toda a
Europa de Leste, constituiu, durante quase meio século, para a Europa
ocidental. Isso e a posição subalterna que a Alemanha aceitou, como
expiação da sua culpa pela II Guerra Mundial – a Alemanha (falamos,
obviamente, antes da reunificação, da Alemanha ocidental) não poderia
afirmar-se politicamente, apenas financiar todo o projecto político da
construção europeia. E deveria até mostrar entusiasmo por isso.
Com o fim da ameaça soviética e com a reunificação alemã, era inevitável
que também essa derradeira máscara caísse. A Alemanha reunificada
voltou a ser, naturalmente, um país como os outros – não mais do que os
outros, mas também não menos. Para mais, acedeu ao poder uma geração que
já não carregava sobre os seus ombros esse peso histórico da “culpa
alemã”. O que a Alemanha tinha a pagar, já o havia feito. Agora,
defenderia simplesmente os seus interesses, tal como todos os outros
países europeus. Quem a poderia impedir? E eis como inevitavelmente se
encerrou o último acto da farsa da “solidariedade europeia”. Chegados
aqui, e concordado de novo com Miguel Real: “existe hoje, em Portugal,
uma alternativa à Europa sem que desta nos tenhamos necessariamente de
desvincular, uma alternativa de futuro aos actuais valores europeus
(que, verdadeiramente, já são mais os valores americanos que europeus)
sem o corte radical com a Europa – o retorno à antiga comunidade de
língua portuguesa: a lusofonia./ De facto, existe uma nova geração que,
desejando um futuro diferente para Portugal, assume sem complexos
neo-colonialistas a existência passada do Império, projectando-o no
futuro da língua comum. O que tem esta nova geração para dar? Nada, a
não ser a vontade e o entusiasmo de transformar o passado comum num
futuro comum assente numa língua comum e num espírito comum”.
Como escreve ainda Miguel Real, a finalizar o penúltimo ensaio do
terceiro capítulo, sugestivamente intitulado “Morte e ressurreição de
Portugal” : “Se, para Portugal, entre 1975 e 2010, a Europa esteve
sempre primeiro, é hora de nos centrarmos nas infinitas possibilidades
virtuais presentes na Lusofonia, tanto do ponto de vista económico como
diplomático, como, sobretudo, do ponto de vista cultural e tecnológico,
criando entre os seus países constituintes uma comunidade semelhante à
Europeia.”. Semelhante?! O próprio Miguel Real, já no último ensaio,
intitulado “O Futuro da Lusofonia”, se corrige – “A Lusofonia deve criar
uma paisagem política nova” –, dado que, ainda nas palavras do autor:
“Diferentemente, a Lusofonia corresponde a um genuíno programa
civilizacional de fundo, unindo num vínculo único povos que a História
fez encontrar e desencontrar. A Lusofonia não é uma ilusão política
porque se fundamenta na história dos encontros/desencontros dos seus
povos constituintes unidos actualmente por um falar comum.”. Eis, em
suma, o Horizonte que Miguel Real nos abre como via de superação da
“morte de Portugal” que ele próprio, como referimos, havia
diagnosticado. Horizonte que, entre nós, tem sido defendido sobretudo
pelo MIL: Movimento Internacional Lusófono , que tem dado voz a essa
“nova geração”.
(publicado no décimo número da NOVA ÁGUIA - excerto)