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quinta-feira, 10 de dezembro de 2009

"O pecado em mim diz «eu»". Criação e decriação em Simone Weil



Publicamos parte da comunicação que apresentaremos amanhã, 11 de Dezembro, pelas 14.30, em "Marginalidade e Alternativa. Jornada comemorativa do centenário de Simone Weil" (Anfiteatro IV, Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa). O Colóquio abre às 10.00 com a comunicação de Sylvie Courtine-Denamy, "Enracinement et déracinement chez Simone Weil". É a oportunidade de conhecer uma das mais prodigiosas pensadoras, místicas e mulheres de acção do século XX.
Os números entre parênteses dizem respeito às páginas de La pesanteur et la grâce (Paris, Presses Pocket, 1993).


“O pecado em mim diz «eu»”: criação e decriação em Simone Weil


É tarefa eminentemente difícil escrever sobre Simone Weil e, sobretudo, sobre o centro da sua vida, a sua experiência espiritual, cuja profundidade a arrebata e torna dificilmente acessível às regiões superficiais onde se transacciona a vida comum ou convencional dos homens. Sem abrangermos toda a sua obra, queremos comentar um trecho que nos parece condensar muito do que há de mais fundo na sua visão e vivência, socorrendo-nos para tal de outras passagens dessa obra magistral que é La pesanteur et la grâce.

“O pecado em mim diz “eu”.
Eu sou tudo. Mas esse “eu” é Deus. E não é um eu.
O mal faz a distinção, impede que Deus seja equivalente a tudo.
É a minha miséria que faz que eu seja eu. É a miséria do universo que faz que, num sentido, Deus seja eu (isto é, uma pessoa)” (40).

Para compreendermos este fragmento, temos de o situar no contexto da visão que a autora tem da íntima articulação entre a criação divina e a humana decriação do seu ser criado. Com efeito, Simone Weil vê a criação como um perpétuo acto de amor de Deus a si mesmo “através de nós”, no qual esse mesmo amor que nos dá o ser nos permite a e convoca à voluntária e amorosa devolução disso que nos dá. O Deus criador perpetuamente mendiga junto do homem essa mesma existência que não lhe oferece senão para a mendigar, não amando em nós o sermos, mas antes “o consentimento a não ser”. É isso que faz da existência humana uma “espera” de Deus, no duplo sentido de um humano esperar Deus e de um divino esperar o homem, ou seja, o seu “consentimento a não existir” (42).

A criação, manifestação de “uma força «deífuga»”, sem a qual “tudo seria Deus”, implica, “num sentido”, a divina renúncia “a ser tudo”, para que possa haver quem seja “alguma coisa” e assim possa renunciar a isso, como “imitação” da divina renúncia criadora e seu “único bem” (43). Aplicando também à criação o que São Paulo diz, na Carta aos Filipenses, da kenôsis redentora, o divino esvaziamento da própria divindade – ou o auto-ocultamento divino, sem o qual Deus não poderia criar (49) - apela o humano esvaziamento “da falsa divindade com a qual nascemos” (44). Como diz Weil: “Foi dada ao homem uma divindade imaginária para que ele se possa dela despojar como o Cristo da sua divindade real” (43).

Deus renuncia à própria totalidade e o divino amor criador retira-se da criatura humana para que ela possa existir e amá-lo: é assim que surge a “necessidade”, espaço, tempo e matéria, como o “ecrã colocado entre nós e Deus para que possamos ser” e sem cuja protecção, expostos à “irradiação directa” do amor divino, nos evaporaríamos “como água ao sol”. Sem essa separação protectora do imediato evanescimento na divindade, “não haveria suficiente eu em nós” para o abandonarmos “por amor”. É esse amor que nos cabe, “trespassar o ecrã para cessar de ser” (42-43).

O homem participa na divina criação do mundo, não propriamente colaborando na constituição de si e da realidade não-humana - como nas leituras comuns da questão, que evocam a nomeação adâmica dos animais por Deus criados, no Génesis (2, 19-20) - , mas antes decriando-se a si mesmo e devolvendo-se à divindade, sendo nisso que é cocriador: “Nós participamos na criação do mundo decriando-nos a nós mesmos” (44). Isto mostra que a criação do mundo apenas se cumpre na decriação do homem, que consiste em “fazer passar o criado no incriado”, distinta da “destruição”, seu “ersatz culpável”, que faz “passar o criado no nada [néant]” (42). Se, enquanto “Criador”, Deus é necessária e inerentemente presente em tudo o que existe, desde que vem a ser, o que é a “presença de criação”, já para ser presente enquanto “Espírito”, ou seja, para a “presença de decriação”, Deus carece da “cooperação da criatura”, nessa des-entificação de si que é a própria salvação. A pensadora cita Santo Agostinho - “Aquele que nos criou sem nós não nos salvará sem nós” - (48-49), embora este colaborar do homem na sua salvação não seja em Weil, ao contrário do santo de Hipona, senão a deconstrução do seu ser criado.

Na verdade, algo mais fundo se oculta na constatação de que “Deus me deu o ser para que eu lho restitua”. A criação divina é como as provas e armadilhas dos contos iniciáticos: se a criatura cede e aceita o dom do próprio ser, isso é “mau e fatal”, e só a sua “recusa” manifesta a “virtude” salvífica. Se a criação consiste na divina permissão de “existir fora” da divindade, compete à criatura “recusar esta autorização”, sendo nisso que consiste a “humildade”, “rainha das virtudes” (51). Recusar existir fora de Deus é na verdade recusar um ser fictício, a “falsa divindade” atrás referida, a determinação inerente ao nascimento (44), pois na existência humana não há “ser”, apenas “ter”. Enquanto o homem pode somente conhecer de si o que é exterior e circunstancial, o seu verdadeiro ser “está situado por detrás da cortina” da “miséria humana”, “do lado do sobrenatural”. Aí reside o “eu”, “oculto para mim (e para outrem)”, o qual, por isso mesmo, não é propriamente humano: “ele está do lado de Deus, ele é em Deus, ele é Deus”. Por isso, do mesmo modo que ser humilde é recusar existir fora de Deus, “ser orgulhoso é esquecer que se é Deus…” (49). Enquanto o orgulho consiste em enaltecer-se pelo que se não é, a humildade reside em nada se supor, desejar ou acrescentar para além desse divino húmus a que se é íntimo.

Podemos agora comentar o trecho inicial. A razão pela qual “o pecado em mim diz «eu»” é que toda a auto-identificação e auto-afirmação consiste em aceitar o divino dom de ser, em vez de iniciaticamente o recusar, aceitando apenas dele a possibilidade de o negar. Dizendo “eu” exerço a liberdade, aberta pelo divino esvaziamento ou ocultamento, para a negar determinando-a numa id-entificação, em vez de a preservar recusando exercê-la. Dizendo “eu” assumo a possibilidade de me autoposicionar na existência e nisso caio no orgulho de me esquecer Deus, na ausência de humildade de aceitar construir uma fictícia entidade autónoma. Na verdade, não faz sequer sentido dizer “eu”, pois “eu sou tudo” enquanto não humano e não criado, enquanto Deus. Somente esse “eu” que é “tudo” “é Deus” e por isso “não é um eu”, não é um ente determinado. Sendo Deus o não haver eu, o acto de dizer “eu” peca, ou melhor, é pecado, consistindo no próprio “mal” que “faz a distinção”, ao conferir uma fictícia id-entidade à criatura e ao criador, impedindo “que Deus seja equivalente a tudo” (40) (em rigor, impedindo o reconhecimento disso). A possibilidade do mal é a própria possibilidade da criação, o risco, dir-se-ia, que Deus corre ao renunciar-se e ocultar-se, permitindo haver quem, para seu “único bem” (43), negue o ser criado e a própria criação, mas também, simultaneamente, quem não recuse o dom de ser e o guarde para si, aferrando-se nessa “raiva de persistir” (* Heidegger em comentário a Anaximandro) ou nesse espinosiano “esforço” de “perseverar no seu ser” que aqui obstaculiza e frustra o divino moto criador. A divina criação fracassa no haver quem a aceite, tombando na “miséria” que o converte num “eu” (40), sem trespassar em Deus o “ecrã” do universo e de si (43), que é afinal o mesmo véu da personalidade divina, pois a “miséria” que gera o “eu” é a mesma “miséria do universo” que, “num sentido”, faz que “Deus seja eu (isto é, uma pessoa)” (40). É o fracasso na prova iniciática da criação que gera a ficção idolátrica da personalidade e da id-entidade humana e divina. Simone Weil mostra aqui, pesem notáveis singularidades e divergências, a sua funda filiação na corrente de espiritualidade e mística cristã que, com pontos salientes em Marguerite Porete e Mestre Eckhart, vê no processo de autoconstituição do sujeito na existência a demissão do incriado divino que simultaneamente o entifica e personaliza à semelhança da própria entificação e personalização, instaurando uma aparente clivagem entre o humano e o divino que exige ser abolida numa conjunta libertação de si e desse “Deus” antropomorficamente pensado, mediante o que Marguerite designa como “désencombrement” (desobstrução, desimpedimento) e Eckhart como “Durchbrechen” (trespassar).

Nascidos “revirados”, invertidos, negadores do divino impessoal enquanto afirmadores de nós e de um Deus-pessoa, há que inverter essa inversão, negar essa negação, “restabelecer a ordem”, o que implica “desfazer em nós a criatura” (45). Compreendendo-se que na verdade “nada se é, o objectivo de todos os esforços é tornar-se nada”, sendo para esse fim que se aceita sofrer, se age e se ora: “Meu Deus, concedei-me tornar-me nada [rien]”. É na medida desse auto-apagamento do sujeito que “Deus se ama através de mim” (44), cumprindo o amor a si que é o sentido único da criação (42), entendida para além do antropocentrismo habitual. “Ser nada” é o que instala cada sujeito no seu “verdadeiro lugar no todo” (46), essa ausência de si, esse não-eu que é o próprio Deus.

O apagamento do sujeito nada mais é, nesta perspectiva, do que a evanescência da “sombra projectada pelo pecado e pelo erro que detêm a luz de Deus”, “sombra” que a si mesma se toma por um “ser”. É por isso que esse apagamento não é, em rigor, uma divinização do sujeito, o que seria a impossível equiparação da sombra à luz: “Mesmo se se pudesse ser como Deus, valeria mais ser lama que obedece a Deus” (51). Incompossível com a divindade, o sujeito há-de encontrar “a plenitude da alegria” num mesmo e único pensamento, o de que “Deus é”, ou seja, o de que ele mesmo, o suposto sujeito, “não é” (48). A “alegria perfeita e infinita” que há em Deus em nada se aumenta ou diminui pelo facto do sujeito nela participar ou não, o que retira a isso toda a importância, denunciando o autocentramento do desejo de salvação e da crença na imortalidade (48).

Decriar-se é apagar-se e isso é, num sentido, fazer desaparecer o véu ou sombra ficticiamente interposto pelo eu entre Deus e o mundo, permitindo que Deus, através de nós, sem nós, “percepcione a sua própria criação”: “o que o lápis é para mim quando, de olhos fechados, eu palpo a mesa com a ponta – ser isso para o Cristo”; “bastaria que eu tivesse sabido retirar-me da minha própria alma para que esta mesa que tenho diante de mim tivesse a incomparável fortuna de ser vista por Deus” (52). Gandhi escreve, nas Cartas ao Ashram: “Sentir que somos alguma coisa, é erguer uma barreira entre nós e Deus”. Em Simone Weil, todavia, isso que em nós diz “eu” instaura antes uma separação e um véu entre Deus e o mundo, constituindo um desnecessário e prejudicial observador que impede o seu pleno contacto e transparência, pela remissão a si de tudo o que percepciona e experimenta. O sujeito deve assim retirar-se para respeitar a intimidade entre Deus, os seres e as coisas, como o “terceiro importuno” e indiscreto que urge desaparecer para que dois “amantes”, “amigos” ou “noivos” “estejam verdadeiramente juntos” (52-53, citar). Não se trata de desejar o fim da experiência do mundo, mas antes o fim da nossa experiência do mundo, da experiência do mundo por um eu-sujeito, a fim de que ela seja plena, divina, tal qual, sem nenhuma relativização a qualquer finitude, por múltiplas e singulares que sejam as perspectivas em que se dê:

“Não posso conceber a necessidade de que Deus me ame […]. Mas represento-me sem dificuldade que ele ama essa perspectiva da criação que não se pode ter senão do ponto onde estou. Constituo todavia um ecrã. Devo retirar-me para que ele possa vê-la” (52).

“Não desejo de modo algum que este mundo criado não mais me seja sensível, mas que não seja mais a mim que ele seja sensível. A mim, ele não pode dizer o seu segredo que é demasiado alto. Que eu parta, e o criador e a criatura trocarão os seus segredos.
Ver uma paisagem tal qual ela é quando aí não estou…
Quando estou nalgum lado, maculo o silêncio do céu e da terra pela minha respiração e pelo bater do meu coração” (53).

[...]

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