Escola de Darque passou um aluno com nove negativas e garante que foi a melhor solução
21.07.2009 - 08h24 Alexandra Campos, Andreia Sanches
Negativa a Língua Portuguesa, a História e a Matemática. Negativa também a Geografia, a Físico-Química, a Educação Visual... Feitas as contas, José, chamemos-lhe assim, teve nove negativas em 14 "cadeiras". Tem 15 anos, está no 8.º ano do ensino básico. E a escola passou-o.
Não é caso inédito, mas não deixa de ser raro, como admite Augusto Sá, director do Agrupamento de Escolas de Monte da Ola, em Darque, Viana do Castelo. No final do 3.º período, o conselho de turma reuniu, cada professor deu a sua nota e, no caso de José, o balanço era negativo. Augusto Sá nota, contudo, que para decidir se um aluno "passa" não basta "somar" as positivas e as negativas. "Há um percurso, há um contexto, há uma família..." E a decisão de passar José "teve em conta" tudo isso.
O professor não adianta detalhes, para preservar a identidade do jovem. Limita-se a explicar que ele é acompanhado pelos Serviços de Psicologia do agrupamento desde o 2.º ciclo, que já tinha chumbado uma vez, que vive uma situação "sócio-familiar grave" que se agravou ainda mais este ano.
A lei, continua, é clara: dá margem de manobra às escolas para avaliarem os benefícios de reter um aluno que, como é o caso, frequenta um ano intermédio (o 3.º ciclo do ensino básico só termina no 9.º ano) da escolaridade obrigatória. Independentemente do número de negativas.
Resultado: o conselho de turma entendeu que o melhor para o aluno seria transitar. E decidiu que o jovem irá frequentar no 9.º ano um curso de Educação e Formação, que o prepara para a vida activa e "que tem características especiais" - "ele tem capacidades, mas o contexto sócio-familiar não tem permitido que evolua e acreditamos que, com acompanhamento, atingirá os objectivos", diz Augusto Sá.
Em casos destes, admite, os conselhos de turma preferem, por vezes, fazer subir administrativamente as notas dos alunos, para que na pauta do final do ano, que é pública, não apareça preto no branco uma decisão que causa estranheza na comunidade. Mas a escola decidiu assumir a decisão.
O caso foi, contudo, lido em alguns blogues de professores como um exemplo de facilitismo. "Sim, viram bem: a criatura teve 9 negativas e, mesmo assim, TRANSITOU", lia-se no Movimento Mobilização e Unidade dos Professores.
João Dias da Silva, secretário-geral da Federação Nacional dos Sindicatos da Educação (Fne), não conhece o caso, mas vai dizendo que não tem especial simpatia por uma lei que permite que um aluno passe com várias negativas. Admite, contudo, que tem de haver excepções. E dá exemplos de casos que já apareceram em conselhos de turma em que participou: "Uma separação familiar, a morte de um irmão, de um pai..."
Certo é o que diz o despacho normativo n.º 50/2005: "A retenção deve constituir uma medida pedagógica de última instância". É essa a regra pela qual devem guiar-se as escolas. O balanço feito no mês passado sobre a forma como estão a decorrer os planos de acompanhamento destinados a alunos que ficaram retidos mostrou que mais de 40 mil foram abrangidos mas 25 por cento chumbaram ainda assim.
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Esta é uma notícia escandalosa? Depende inteiramente do leitor, o escândalo.
Em princípio a decisão de permitir a transição do aluno pode ser pedagogicamente a mais correcta, dada a situação do aluno e, também, as condições que a escola tem para enfrentar essa situação.
Muitos agentes educativos, e falo em especial de alguns professores, encaram a retenção dos alunos como uma "reprovação", ou seja, um aluno que não atinja os objectivos previamente fixados no âmbito da matriz curricular em que se inscreve o seu percurso, merece reprovação, o que quer dizer, um juízo negativo em relação à sua conduta e uma rejeição liminar da sua maneira de ser enquanto pessoa. Isto pode ter um efeito devastador (acho que tem sempre). Há quase um mês uma adolescente de 15 anos atirou-se dum 5º andar dum prédio perto da minha casa. Aparentemente um dos motivos para a tentativa de suicídio terá sido a sua "reprovação". Uma jovem plena de vida, incapaz de ver a vida em toda a sua plenitude (e quem, quando jovem, é “capaz” de o ver?) por causa da escola, será isso possível?
É óbvio que uma situação como esta tem sempre outros problemas associados, sendo que os problemas relacionados com a vida escolar devem ser vistos em relação com as disfuncionalidades que possam existir na vida familiar, na vida emocional, enfim, em todas as vertentes daquela vida em particular.
Mas a escola é sempre muito mais do que uma instituição vocacionada para o ensino: é um local de socialização que coloca o indivíduo perante relações não protegidas pelos afectos dos mais íntimos (quando essa esfera dos afectos nascidos da vinculação familiar não existe ou é disfuncional, então as coisas tornam-se muito mais problemáticas). Para um adolescente há muita coisa que se decide nesse contexto: o seu auto-conceito, formado a partir das inter-relações com os pares, com os professores e com os restantes elementos da comunidade escolar[1]; as expectativas que tem em relação à vida; a sua visão da sociedade a que pertence e a sua situação como indivíduo no seio dessa sociedade, visão essa que se vai interligar com as suas atitudes básicas em relação aos objectos sociais e aos valores a eles associados.
Uma rejeição a nível afectivo, por exemplo, terá consequências na forma como o jovem se encarará no futuro na sua inter-relação com os outros.
Por isso a escola tem que ser pensada, não como organismo social formatado a partir de princípios estandardizados, aplicados de forma cega em todo o lado. Há que ver que a escola deve estar enraizada numa comunidade de base, deve ser alimentada pelas veias por onde corre o sangue dessa comunidade, por assim dizer[2]. A gestão da escola deve ser feita pela comunidade: os pais, os moradores dos bairros que são servidos pela escola, as associações culturais, recreativas, devem estar presentes na escola. A cidadania autêntica, hoje, deve passar pela reapropriação dos bens colectivos que foram “nacionalizados”, tecnocratizados e colocados ao serviço dum Estado que funciona como máquina repressiva do poder-sobre-si que é ínsito aos seres humanos e é a base de toda a convivência verdadeiramente democrática.
Aos professores deve ser entregue o ensino e a escola deve contar com a colaboração de profissionais qualificados em áreas de intervenção importantes: psicólogos, assistentes sociais, bibliotecários, profissionais de saúde, etc..
As escolas devem ter também uma dimensão humana, por assim dizer: menos alunos, professores e funcionários, mais proximidade entre as pessoas e uma grande diversidade etária – as escolas integradas, do pré-escolar até ao 12º ano serão de preferir às escolas especializadas em ciclos de ensino. O modelo fordiano de escola, a escola-fábrica, produtora e reprodutora de conformismo, avessa à criatividade e à individualidade livre-para-si, deve ser desconstruído, desmontado, “desmascarado”: ninguém nasce consumidor, ninguém nasce produtor, em vez de gerados, criados e educados, somos produzidos (in vitro, se in vivo a coisa parecer demasiado espasmódica), geridos e formatados, o desejo, em vez de ser excedência e propiciador de libertação, é um cárcere cada vez mais constringente porque nos prende às coisas mais insignificantes e à subtileza metafísica do acto de comprar, a compra alienada da noção de posse.
Hoje é claro que uma das linhas orientadoras da escola tradicional é a “fabricação do insucesso escolar”: “para a racionalidade tradicional a Escola funciona, se for capaz de seleccionar as elites, excluindo do seu seio aqueles que não lhes pertencem, isto é, fabricando o insucesso escolar como operação legítima.”[3]
A racionalidade tradicional, a partir dos anos 80 do século XX, foi sendo substituída por outro tipo de racionalidade, a racionalidade meritocrática, que presidiu à massificação do ensino e que trouxe a mecânica da exclusão para dentro dos muros da escola. Agora as elites devem ser maturadas, fermentadas, dentro duma escola pretensamente inclusiva, uma escola que trata os alunos mais desfavorecidos com um olhar aparentemente compreensivo, mas veiculador dum novo tipo de estigma: surgem as turmas com percursos “alternativos”, os projectos de integração-em-seja-o que-for menos numa cidadania plena e numa sociedade mais equitativa. Assim: “para a racionalidade meritocrática é, pelo contrário, a retórica da igualdade de oportunidades que se define como a sua referência matricial. /…/ Neste caso recusa-se fabricar o insucesso escolar para antes se produzirem sucessos escolares distintos e diferenciados quanto ao seu valor social e educativo. Trata-se de uma opção que, ao contrário da racionalidade tradicional, pretende evitar a mortalidade escolar, sem no entanto se recusar a selecção académica. /…/ Os alunos que pertençam aos estratos sociais mais desfavorecidos tendem a seguir vias académicas culturalmente menos exigentes, enquanto que aos outros compete percorrer as vias escolares mais nobres.”[4]
A sociedade não precisa só de doutores, como é óbvio. Mas não é isso que está aqui e causa, mas antes a premissa-assassina de acordo com a qual a estratificação social é seguida, em espelho, por uma atribuição de direitos de cidadania desiguais, com reflexos evidentes no acesso à Cultura e no usufruto duma vida cultural. Poderá um canalizador mover-se em ambientes culturais “nobres”, como as exposições de arte, os concertos de música erudita, os colóquios científicos? A presença cada vez mais assídua de licenciados, nas mais diversas áreas, nas caixas dos hipermercados, tem servido para incrementar o nível e a densidade cultural da interacção entre os “caixas” e os clientes? “Olhe que hoje o salmão e o Proust estão em promoção, não quer aproveitar?”
A escola hoje, por via desse conjunto de intencionalidades agressivamente incorporadas na praxis educacional, está transformada num dispositivo de dissuasão cívica: a questão da exclusão social está resolvida porque se encontrou na escola a solução para todos os males sociais. Nada menos verdadeiro. Se atentarmos no exemplo do aluno da Escola de Darque a que se refere a notícia acima transcrita. O escandaloso da notícia não está na sua não “reprovação”, porque, de facto, o aluno foi REPROVADO da pior forma: viu o seu insucesso escolar publicitado e elidido por motivos “humanitários”: dupla estigmatização que tornou o seu caso uma notícia nacional, com as marcas que isso acabará por lhe deixar bem fundo, no rosto da sua alma, o ferrete da diferenciação, a vitimização por um humanitarismo escolar auto-complacente.
E veja-se a reacção dum auto-denominado “Movimento Mobilização e Unidade dos Professores”: "Sim, viram bem: a criatura teve 9 negativas e, mesmo assim, TRANSITOU". Com “professores” assim quem precisa de campos de concentração e outros mecanismos de facilitação da desumanidade? E, se bem pergunto, para que é que os professores se devem mobilizar? Se se mobilizam contra algo, é porque acham que estão a entrar numa guerra. Guerra contra quê e contra quem? Contra os alunos “atípicos”, aqueles que, mesmo tendo capacidades, como nos diz a notícia, dado o seu contexto sócio-afectivo, não são capazes de perfazer um percurso escolar “normal”?
Este aluno está a ser bem tratado por esta sociedade que se diz democrática?
Mais um indício de imbecilidade pedagógica: por vezes o acompanhamento psicológico é um mero paliativo, disfarça as feridas, desresponsabiliza a comunidade envolvente, sanciona a intervenção do Estado, dá a ideia de que se está a fazer o possível para integrar e para ajudar a crescer. Poderia ir-se muito mais longe. Mas vivemos numa sociedade em que cada vez mais se normaliza a demência, se aceita a infelicidade e o infortúnio como males necessários do “desenvolvimento”, para gáudio dos laboratórios farmacêuticos que inundam as vidas com doses cada vez mais deprimentes de anti-depressivos, de alucinogénicos mais ou menos ligeiros, de facilitadores químicos de indiferença e de auto-abandono.
A “criatura” é, pois, acompanhada por algum psicólogo de serviço, talvez muito competente, talvez colocado na escola com um “vínculo” precário e sem grande prática clínica, ou sem grande experiência educacional. Quem sabe? É algo de parecido com a assistência jurídica oficiosa no sistema judicial, profissionais quase marginalizados, em constante perigo de desemprego, a lidar com os casos mais graves de exclusão. Mas é a escola que temos, mas essa não deve ser uma fatalidade.
Mesmo a promessa de acompanhamento do aluno por parte da escola, no ano seguinte, é perpassada por uma ambiguidade atroz, pouco, muito pouco “humanitária”: “o jovem irá frequentar no 9.º ano um curso de Educação e Formação, que o prepara para a vida activa e ‘que tem características especiais.” Esta deambulação eufemística significa o seguinte: o aluno será entregue ao ilusionismo pedagógico que a actual política educativa tem disseminado pela escola - não lhe vamos ensinar nada a não ser isto: o teu lugar é nos escalões mais “inferiores” da escala social, “tiveste azar, nasceste pobre, numa família desestruturada, conforma-te com isso, depois do próximo ano vais meter nojo para as obras, se tiveres a sorte de arranjar emprego, nós por cá limparemos as mãos e ficaremos livres de ti. E tu de nós, como é óbvio e desejável.”
E pronto. Mãos limpas, consciência impoluta, pedagogia mais “humanitária” não há.
[1] Aqui é importante que ter em conta o contributo de Ervin Goffman para o estudo das relações interpessoais. Goffman formulou, em 1963, na obra Stigma: Notes on the Management of Spoiled Identity, uma teoria do estigma que ainda hoje se mostra consistente, tanto em Sociologia como em Psicologia. Para uma introdução à teoria do estigma pode ter-se em conta o seguinte artigo: http://www.scribd.com/doc/6889132/estigma.
[2] Também é preciso saber até que ponto essa comunidade de base existe, ou seja, se os aglomerados urbanos permitem uma vida comunitária. Aqui se vê que a escola não pode mudar radicalmente com remanejamentos intra-muros, é a própria sociedade que tem que ser construída a partir de intencionalidades outras em relação às que estão a marcar a fisionomia da sociedade em que vivemos. Tem que se acabar com ilusionismo que consiste em considerar que a escola é capaz de fomentar a igualdade de oportunidades, quando vivemos uma sociedade cada vez menos igualitária, cada vez menos capaz de franquear o fosso da exclusão.
[3] COSME, Ariana, Ser professor: A acção docente como uma acção de interlocução qualificada, Legis editora, Porto, 2009, p. 72.
[4] IBIDEM, pp.72-73.
2 comentários:
Até admito que, no caso em concreto, a decisão tenha sido a mais "correcta" (com aspas porque não haveria forma de tomar a decisão mais correcta sem elas...). Mas há aqui um ponto essencial: um aluno oriundo de uma família "pobre" não tem que ser necessariamente um caso de insucesso escolar, mesmo sabendo-se que, obviamente, um aluno oriundo de uma família "rica" tem, à partida, maiores possibilidades de sucesso...
É claro que a realidade é muito mais "complexa".
O problema é quando o insucesso está de um lado, pesa muito mais. Mas até o conceito de "insucesso" é, ele próprio, complicado.
:)
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