A Águia, órgão do Movimento da Renascença Portuguesa, foi uma das mais importantes revistas do início do século XX em Portugal. No século XXI, a Nova Águia, órgão do MIL: Movimento Internacional Lusófono, tem sido cada vez mais reconhecida como "a única revista portuguesa de qualidade que, sem se envergonhar nem pedir desculpa, continua a reflectir sobre o pensamento português". 
Sede Editorial: Zéfiro - Edições e Actividades Culturais, Apartado 21 (2711-953 Sintra). 
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Donde vimos, para onde vamos...

Donde vimos, para onde vamos...
Ângelo Alves, in "A Corrente Idealistico-gnóstica do pensamento português contemporâneo".

Manuel Ferreira Patrício, in "A Vida como Projecto. Na senda de Ortega e Gasset".

Onde temos ido: Mapiáguio (locais de lançamentos da NOVA ÁGUIA)

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quarta-feira, 1 de abril de 2009

Mais um volume COLECÇÃO NOVA ÁGUIA: "Via Aberta: de Marinho a Pessoa, da Finisterra ao Oriente", de Renato Epifânio



Do volume, publicamos aqui este ensaio:

Pessoa, o filósofo do outro

Há certamente quem considere que Pessoa não é um filósofo pela simples mas suficiente razão de que jamais forjou um “sistema filosófico” propriamente dito. Ao folhearmos os seus textos mais assumidamente filosóficos, coligidos nessa obra precisamente intitulada Textos Filosóficos[1], essa parece ser, de facto, uma evidência. Em lado algum encontramos, com efeito, um “sistema filosófico”, ou seja, um pensamento filosófico devidamente sistematizado, devidamente estruturado, em suma, um pensamento que, sistemática, estruturadamente, atenda, procure atender, às questões, às cruciais questões, que desde sempre, que para todo o sempre, animaram, animarão, a filosofia. O que encontramos, isso sim, é antes uma série de reflexões não devidamente desenvolvidas, algumas petições de princípio apenas simplesmente enunciadas, enfim, um amontoado de textos que, no seu conjunto, não configuram, de todo, um “sistema filosófico” reconhecível enquanto tal.
Quem considera que Pessoa não é um filósofo por essa razão tem, no entanto, que atender ao seguinte: se, efectivamente, Pessoa jamais forjou um “sistema filosófico” propriamente dito, isso, em si mesmo, no caso pessoano, é já uma posição filosófica. Com efeito, se há alguma tese que Pessoa, em nome próprio ou heteronimamente, sustenta, procura sustentar, ao longo de todas estas páginas, é, precisamente, a da impossibilidade – filosófica, saliente-se – de forjar, de fundar, um “sistema filosófico”. Daí, aliás, estas suas palavras, que encontramos no texto que serve de “prólogo” à obra: “A estes escritos chamo antíteses porque representam, em sua íntima substância, contra-opiniões, desmascaramentos, desilusão.”[2]. Eis, de facto, todo o programa pessoano, o programa, o projecto inspirador de todos estes “escritos”: fazer a antítese de toda e qualquer tese, desmantelar todo e qualquer “sistema filosófico”, desmascarando a sua genética, a sua intrínseca falsidade – todo o “sistema filosófico” é, por natureza, falso –, desiludindo, enfim, todos aqueles que, ingenuamente, procuram a verdade em tais “embustes”.
Quem considera que Pessoa não é um filósofo, um verdadeiro filósofo, apenas porque jamais forjou um “sistema filosófico”, condena-se pois a esta contra-resposta: Pessoa é um filósofo precisamente porque jamais forjou um “sistema filosófico”, mais propriamente, porque desmascarou a genética, a intrínseca falsidade de todo e qualquer “sistema filosófico”; ao invés, quem procura a verdade em tais “embustes”, esse é que, de facto, não é um filósofo, um verdadeiro filósofo. Na aporia, o apeiron, a aparição… Eis porque, de facto, todo o “sistema filosófico” é, por natureza, falso: porque toda a “síntese” é já, em si mesma, um atrofiamento, uma ocultação, da verdade. Tal, aliás, o que o próprio Pessoa nos assegurou ainda no texto que serve de “prólogo” à obra – como aí escreveu: “Na realidade do pensamento humano, essencialmente flutuante e incerto, tanto a opinião primária como a que lhe é oposta, são em si mesmas instáveis; não há síntese, pois, nas coisas da certeza, senão tese e antítese apenas. Só os Deuses, talvez, poderão sintetizar.”[3].
Por tudo isso, consideraremos aqui Pessoa como um filósofo, como o filósofo do “outro”: do “outro” do pensar, do humano, demasiado humano, pensar, que sempre tende a atrofiar, a ocultar a verdade, procurando a “síntese” ao invés de se contentar com o que há, “tese e antítese apenas”; do “outro” de todo o ser, dado que Pessoa, como veremos, desmascarará aqui igualmente a falsidade, a ilusão de tudo, da própria ilusão; do “outro” de si próprio, não fosse igualmente, a seu ver, o seu próprio “eu”, todo o “eu”, uma falsidade, uma ilusão, a falsidade, a ilusão à qual o próprio Pessoa procurou, porventura ilusoriamente, escapar, outrando-se, criando outros “eus”, os seus heterónimos; do “outro” de nós mesmos, enfim, enquanto Povo, enquanto País, enquanto Pátria. Em que medida foi Pessoa um filósofo, o filósofo do “outro” – do “outro” do pensar, de todo o ser, de si próprio, de nós mesmos –, eis, pois, o que procuraremos aqui avaliar. Como é óbvio, até pela dimensão deste nosso texto, não temos a pretensão de dizer tudo o que há a dizer sobre Pessoa, de inteiramente desocultar a verdade, a face pessoana. Mesmo que a tivéssemos, aliás, essa nossa pretensão estaria, desde logo, condenada ao fracasso. Como nos asseguraria o próprio Pessoa, nunca há apenas uma só face, um só rosto.

Pessoa, o filósofo do “outro” do pensar.

O primeiro e, porventura, o mais importante de todos estes Textos Filosóficos intitula-se “Introdução à Metafísica”, o qual não é aliás propriamente um texto, mas uma série de textos, escritos a várias vozes, nos quais, não obstante, Pessoa, em nome próprio ou heteronimamente, desenvolve, procura desenvolver, uma tese, precisamente a tese que se constitui, que se pretende constituir, como a antítese de todas as teses, de todos os “sistemas filosóficos”. Os princípios, os basilares princípios, dessa tese, desta tese antitética de todas as teses, podemos, aliás, desde logo encontrá-los no primeiro dessa série de textos, da “autoria” de António Móra, e intitulado “Introdução ao Estudo da Metafísica – princípios basilares”[4]. Não iremos aqui analisá-los todos, mas apenas aqueles que, neste momento, mais directamente nos interessam, ou seja, apenas aqueles que mais directamente sustentam a nossa tese, a primeira das nossas teses – a saber: que Pessoa é um filósofo, o filósofo do “outro” do pensar, do humano, demasiado humano, pensar, que sempre tende a atrofiar, a ocultar a verdade, procurando a “síntese” ao invés de se contentar como o que há, “tese e antítese apenas”.
O primeiro desses “princípios basilares” enuncia-o Pessoa, António Móra, do seguinte modo: “A filosofia é um antropomorfismo em todos os sistemas (…).”[5]. Daí, desde logo, a sua denúncia da genética, da intrínseca falsidade de todos os “sistemas filosóficos” – dado que se “a filosofia é um antropomorfismo em todos os sistemas”, ou seja, dado que se todos os “sistemas filosóficos” nada mais são do que repositórios das humanas projecções, que pretendem configurar o real à sua medida, à sua humana, demasiado humana, medida, então, com efeito, todos os “sistemas filosóficos” são falsos, genética, intrinsecamente falsos. Pior, muito pior ainda. Se, de facto, tudo o que vemos, vemos à luz do humano olhar, do humano, demasiado humano, olhar, então tudo o que vemos é falso, genética, intrinsecamente falso, então tudo o que vemos é uma ilusão, uma mera ilusão. Resta saber se –  no pressuposto de que, de facto, tudo o que vemos é uma ilusão, uma mera ilusão, de que, facto, todos os nossos juízos são falsos, genética, intrinsecamente falsos – não será esta nossa visão, esta nossa visão da visão, uma ilusão maior ainda, a maior de todas as ilusões, e se este nosso juízo, este nosso meta-juízo, não será igualmente ainda mais genética, mais intrinsecamente falso, o mais falso de todos os juízos.
Deixando em aberto essa questão – questão que, contudo, realce-se, põe em causa todos os fundamentos do sistema, do anti-sistema, pessoano, e ainda o lugar onde Pessoa se pretende situar, porventura o mais ilusório, porque o mais pan-egóico, de todos os lugares – detenhamo-nos num outro “princípio basilar”, princípio esse que Pessoa, António Móra, enuncia nos seguintes termos: “Querer encontrar às coisas um íntimo sentido, uma ‘explicação’ qualquer é, no fundo, querer simplificá-las (…).”[6]. Eis porque, na sua perspectiva, toda a “síntese” é já, em si mesma, um atrofiamento, uma ocultação, da verdade – dado que se há “tese e antítese apenas”, dado que se todas as coisas, a própria vida, têm múltiplos sentidos, ainda e sempre irredutíveis entre si, então, com efeito, querer encontrar às coisas um íntimo sentido, um só sentido, uma só explicação, não é apenas simplificá-las, é atrofiar, ocultar a verdade, a multiforme verdade, de cada coisa, da própria vida. À luz desta visão, nenhuma coisa tem apenas um só sentido, uma só explicação. Se procurarmos apenas um só sentido para qualquer coisa, para a própria vida, teremos de concluir, como Pessoa, António Móra, aqui conclui, que “a Vida não tem sentido nenhum”.
Posto tudo isto, perguntar-se-á para que serve então a filosofia – dado que, ao procurar encontrar uma “explicação”, uma “síntese”, ela está desde logo condenada a atrofiar, a ocultar a verdade. Questão pertinente. Ouçamos, por isso, a resposta que Pessoa, António Móra, nos dá: “A filosofia foi primeiro uma ‘ciência’: tinha por fim descobrir a verdade para o fim utilitário de nos governarmos na vida; porque, se se julga que há uma vida futura, com castigos e recompensas, não é por certo pouco importante saber-se o que se deve fazer para evitar uns e merecer outros. Hoje a filosofia deve passar a ser uma arte – a arte de construir sistemas do Universo, sem outro fim que o de entreter e distrair, publicando belos sistemas.”[7]. A partir desta resposta, resposta que Pessoa, António Móra, nos reitera logo na passagem imediatamente seguinte – nas suas próprias palavras: “Todos os sistemas filosóficos devem ser estudados como obras de arte.” –, podemos, enfim, compreender para que serve, no entender de Pessoa, a filosofia. Ela não serve para revelar a verdade – dado que, ao procurar revelá-la, ela acaba sempre por ocultá-la. Ela serve, tão-só, para “entreter” e “distrair”, quanto muito, para participarmos no jogo de sombras, no jogo de máscaras, que é, em última instância, o real, a própria verdade. Eis, como, aliás, adiante verificaremos, para que, no entender de Pessoa, serve a filosofia.

Pessoa, o filósofo do “outro” de todo o ser.

Vimos já aqui em que medida, a nosso ver, se assume Pessoa como um filósofo, como o filósofo do “outro” do pensar – na medida em que se demarca de todo o pensar, de todo o humano, demasiado humano, pensar, que sempre tende a atrofiar, a ocultar a verdade, procurando a “síntese” ao invés de se contentar com o que há, “tese e antítese apenas”, na medida em que faz a antítese de toda e qualquer tese, de todo e qualquer “sistema filosófico”, assume-se Pessoa como o filósofo do “outro” do pensar. Daí, como igualmente já aqui vimos, a sua concepção de filosofia. Ela não serve para revelar a verdade – dado que, ao procurar revelá-la, ela acaba sempre por ocultá-la –, mas, tão-só, quanto muito, como dissemos, para participarmos no jogo de sombras, no jogo de máscaras, que é, em última instância, o real, a própria verdade. Daí ainda que todas as filosofias sejam “aceitáveis”, daí ainda que todas elas sejam “igualmente verdadeiras”. Eis, pelo menos, no entender de Pessoa, a posição do verdadeiro filósofo, o mesmo é dizer, do “neo-pagão” – nas suas palavras: “Ele [o neo-pagão] admite todas as metafísicas como aceitáveis, exactamente como o pagão aceitava todos os deuses na larga capacidade do seu panteão. Ele não procura unificar numa metafísica as suas ideias filosóficas, mas realizar um ecletismo que não procura saber a verdade, por crer que todas as metafísicas são igualmente verdadeiras.”[8].
Visto já aqui em que medida, a nosso ver, se assume Pessoa como o filósofo do “outro” do pensar, vejamos agora em que medida se assume Pessoa como o filósofo do “outro” de todo o ser. Para tal, atentemos num outro texto integrante desta primeira série de textos coligidos sob o título geral de “Introdução à Metafísica”, texto igualmente assinado por um heterónimo de Pessoa, Rafael Baldaia, e que se intitula “Tratado da Negação”[9]. Neste seu “Tratado”, denuncia Pessoa, Rafael Baldaia, a falsidade, a ilusão de tudo, de todo o ser, do próprio “Deus” – nas suas palavras: “O Único, de quem Deus, o Deus Criador da Coisas, é apenas uma manifestação, é uma Ilusão. Toda a criação é ficção e ilusão. Assim como a Matéria é uma ilusão, provadamente, para o Pensamento; o Pensamento uma ilusão para a Intuição; a Intuição uma ilusão para a Ideia Pura; a Ideia Pura é uma Ilusão para o Ser. E o Ser é essencialmente Ilusão e Falsidade. Deus é a Mentira Suprema.”[10]. Nessa medida, conclui Pessoa, Rafael Baldaia, “devemos ser negadores de Negação”, consistindo tal “Negação” em “auxiliar o Manifestado a manifestar-se mais, até ele se dissolver em Não-Ser”[11]. Eis, com efeito, no entender de Pessoa, de Rafael Baldaia, do que se trata: de pactuar com a ilusão, com a falsidade do ser, com a “mentira suprema” que é “Deus”, “auxiliando o Manifestado a manifestar-se”, ou seja, auxiliando à manifestação da mentira, da ilusão, da falsidade, assim participando no jogo de sombras, no jogo de máscaras, que é, em última instância, o real, a própria verdade.
Eis, aliás, o que, logo no texto seguinte, Pessoa, agora aparentemente, em nome próprio, apesar do texto ter como título “O Desconhecido”[12], nos reitera. Assim, começa ele por nos dizer que “tudo é ilusão” – o pensamento, o sentimento, a própria vontade –, dado que “tudo é criação, e toda a criação é ilusão”, concluindo-se pois assim que “criar é mentir”. Daí a mentira do não-ser, por nós criado, ilusoriamente criado, na medida em que o pensamos, e que assim passa a ser o que não é: “alguma coisa” e não antes, tão-só, o não-ser, o próprio “Nada”. Daí a irrealidade dos “vários sistemas do universo”, também eles meras mentiras, também eles meras criações. Daí a irrealidade de nós próprios – nas palavras de Pessoa: “Nós próprios, porque existimos, somos criações também, portanto ilusões.”. Daí que, de facto, tudo seja uma ilusão, um “amontoado de ilusões”, inclusivamente, sobretudo, a própria verdade – ainda nas palavras de Pessoa: “Aquilo a que chamamos verdade é aquilo a que também chamamos o ser. Verdadeiro é o que é. Mas o que é é ilusão. Por isso a verdade é a ilusão, é uma ilusão.”. Nessa medida, questiona-se Pessoa, questionamo-nos também nós, “a que abismo vamos ter”? Na medida em que tudo é uma ilusão, inclusivamente, sobretudo, a própria verdade, na medida em que – constatação última, a mais desesperante de todas – “a própria ilusão é uma ilusão”, parece, com efeito, que estamos condenados a cair no mais abissal de todos os abismos.
No entender de Pessoa, há contudo algo que, em última instância, nos salva dessa queda sem fim no mais abissal de todos os abismos: a consciência. Eis, nas palavras do próprio Pessoa, o que se subtrai ao mais abissal de todos os abismos, o que se subtrai à ilusão, ao “amontoado de ilusões”: “Só há uma coisa que não pode ser ilusão, porque ela não é criada: é a consciência. Uma só coisa escapa a toda a crítica – a consciência. A consciência não cria, não é um conceito nosso, porque a não podemos pensar nem como sendo, nem como não-sendo. Pensar, sentir, querer, são ilusões; mas ter consciência não é uma ilusão.”. Mas – questionar-se-á – de que vale a consciência não ser uma ilusão quando tudo o mais o é, inclusivamente a própria ilusão? Só se for para amargamente reconhecermos, como amargamente reconhece Pessoa, Bernardo Soares, no seu Livro do Desassossego, que “tudo é vão”[13]. Só, com efeito, se for para isso. Talvez que, no entanto, sob uma outra perspectiva, sob uma perspectiva outra, tudo se altere, mantendo-se na mesma. E possamos dizer que a consciência – essa que se subtrai ao mais abissal de todos os abismos, essa que se subtrai à ilusão, ao “amontoado de ilusões” – serve afinal, tão-só, para apreciarmos, como escreveu Pessoa, Álvaro de Campos, “o esplendor do sentido nenhum da vida”[14]. Se, de facto, “tudo é ilusório”, inclusivamente a própria ilusão, se, de facto, “tudo é vão”, se, de facto, como nos é dito ainda, “nada tem razão de ser”[15], satisfaçamo-nos pois com a possibilidade de o reconhecermos, satisfaçamo-nos pois com a possibilidade de apreciarmos “o esplendor do sentido nenhum da vida”. Ilusório ou não, eis o caminho, o único caminho, que Pessoa nos deixa em aberto.

Pessoa, o filósofo do “outro” de si próprio.

Antes de ter sido o filósofo do “outro” do pensar, de todo o ser, Pessoa foi, a nosso ver, o filósofo do “outro” de si próprio. Não apenas porque tenha teorizado sobre isso – sobre a impossibilidade de sermos quem somos, de sermos apenas quem somos, sobre a inevitabilidade de sermos sempre outros para nós, de sermos sempre outros que não nós. Pessoa foi, aliás, tanto quanto sabemos, o “inventor” do verbo outrar-se. Mas não é por isso, não é sobretudo por isso, que dizemos que, antes de tudo o mais, Pessoa foi o filósofo do “outro” de si próprio. Dizemo-lo, sobretudo, porque Pessoa foi, em pessoa, a prova, a prova maior, a prova excessiva, mais do que excessiva, disso mesmo: da impossibilidade de sermos quem somos, de sermos apenas quem somos, da inevitabilidade de sermos sempre outros para nós, de sermos sempre outros que não nós. Daí, aliás, a “criação” dos heterónimos. A nosso ver, não foi essa apenas uma criação literária – ainda que, obviamente, também o tenha sido. Foi, sobretudo, uma criação ontológica, mais propriamente, uma compulsão ontológica – na medida em que Pessoa se sentiu compelido a ser outros seres que não ele, mais propriamente ainda, na medida em que Pessoa se sentiu compelido a reconhecer que ele era já, em si próprio, uma “suma de não-eus”. Isto a acreditarmos nas seguintes palavras do próprio Pessoa: “Como o panteísta que se sente árvore [?] e até a flor, eu sinto-me vários seres. Sinto-me viver vidas alheias, em mim, incompletamente, como se o meu ser participasse de todos os homens, incompletamente de cada [?], por uma suma de não-eus sintetizados num eu postiço.”[16].
A acreditarmos nestas palavras de Pessoa, o seu “eu” era pois apenas um “eu postiço”, mais precisamente, uma “suma de não-eus sintetizados num eu postiço”. E isto porque esses outros que ele sentia em si é que eram os seus verdadeiros “eus”, os rostos da sua identidade, da sua autêntica identidade. O seu “eu”, em si mesmo, era pois apenas o lugar de confluência de todos esses outros que ele era, mais propriamente, de todos esses outros que eram em si, o lugar em que, nas palavras de Pessoa, Álvaro de Campos, se “reflectiam todas as forças do universo”[17]. Ou nem sequer isso. Talvez que, com efeito, o seu “eu”, em si mesmo, não chegasse sequer a ser um verdadeiro “lugar” – o lugar de confluência de todos esses outros que ele era, mais propriamente, de todos esses outros que eram em si, o lugar em que se “reflectiam todas as forças do universo” – , mas, tão-só, um espaço irreal, “como um quarto com inúmeros espelhos fantásticos que torcem para reflexões falsas uma única anterior realidade que não está em nenhuma e está em todas”[18]. Ou nem sequer isso. Talvez que, efectivamente, o seu “eu”, em si mesmo, não chegasse sequer a ser um espaço irreal, “como um quarto com inúmeros espelhos fantásticos que torcem para reflexões falsas uma única anterior realidade que não está em nenhuma e está em todas”, mas, tão-só, um “vácuo, um deserto, um mar nocturno”[19]. Ou nem sequer isso. Talvez que, de facto, o seu “eu”, em si mesmo, não chegasse sequer a ser um “vácuo, um deserto, um mar nocturno”, mas, tão-só, o nada, o próprio “Nada”. Seria, aliás, por isso, que, nas palavras de Pessoa – mais propriamente, do seu “semi-heterónimo”, Bernardo Soares –, ele poderia imaginar-se todos, ele poderia imaginar-se tudo: “Posso imaginar-me tudo, porque não sou nada. Se fosse alguma coisa, não poderia imaginar.”[20].
Em última instância, descobrimos, pois, que o nosso “eu”, o nosso verdadeiro “eu”, não é sequer um outro – é, tão-só, um “nada”, um “ninguém”. Eis, pelo menos, a descoberta, a avassaladora descoberta, que Pessoa, Bernardo Soares, realizou – nas suas palavras: “Reparei, num relâmpago íntimo, que não sou ninguém. Ninguém, absolutamente ninguém.”[21]. A avassaladora descoberta, a perturbante visão, que nos revela o sentido – mais propriamente, o sem sentido – do dito oracular “Conhece-te” – ainda nas palavras de Pessoa, Bernardo Soares: “Conhecer-se é errar, e o oráculo que disse ‘Conhece-te’ propôs uma tarefa maior que as de Hércules e um enigma mais negro que o da Esfinge. Desconhecer-se conscientemente, eis o caminho.”[22]. Com efeito, se nós, em última instância, nada somos, se o nosso “eu”, o nosso verdadeiro “eu”, em última instância, não é sequer um outro, mas, tão-só, um “nada”, um “ninguém”, então quanto mais nos procurarmos conhecer, mais nos iludiremos. Nessa medida, o caminho do nosso conhecimento passa por desmascararmos todos os falsos “eus”, todas as ilusórias identidades. Estas não são mais do que meras máscaras – máscaras sem qualquer face, sem qualquer rosto, máscaras que apenas ocultam um “nada”, um “ninguém”. Eis pois, em suma, porque o caminho do nosso conhecimento se cumpre desta forma, por negação: trata-se de aceder ao ser do não-ser do nosso ser, ao ser do nosso verdadeiro ser. Daí, aliás, o “caminho da Filosofia”: trata-se de aceder ao ser do não-ser do ser, o verdadeiro ser de todo o ser. Nas palavras de Pessoa: “O caminho da Filosofia não é partir do conhecido para o desconhecido, mas do desconhecido no conhecido para o desconhecido em si mesmo.”[23].
Porque só somos “quem não somos”[24], “o que não somos”[25], porque “viver é ser outro”[26], “só nos encontramos quando de nós fugimos”[27]. Porque “a alma não tem raízes”[28], “somos estrangeiros em toda a parte”[29] e “a nossa Pátria é onde não estamos”[30]. Porque “o abismo é o muro que temos”[31] – ou seja, porque o nosso “ser” não tem, jamais, muro que o limite –, importa pois navegar, não viver – conforme o célebre mote: “Navegar é preciso/ Viver não é preciso” –, importa pois “partir”, “ir de vez” – nas palavras do poeta: “Ah seja como for, seja por onde for, partir!/ Largar por aí fora, pelas ondas, pelo perigo, pelo mar./ Ir para Longe, ir para Fora, para a Distância Abstracta,/ Indefinidamente, pelas noites misteriosas e fundas,/ Levado, como a poeira, plos ventos, plos vendavais!/ Ir, ir, ir, ir de vez!”[32]. Eis o caminho que Pessoa procurou cumprir, eis o caminho que, segundo Pessoa, importa que cada um de nós cumpra: só assim nos cumpriremos. Ainda e sempre, importa pois cumprir esse caminho – nas palavras do poeta, “o Caminho Marítimo através dos nevoeiros da alma”[33], em busca da “Índia nova”, dessa “Índia que não existe no espaço”. Só assim o nosso destino, o nosso “verdadeiro e supremo destino”, se realizará – ainda nas palavras do poeta: “E a nossa grande Raça partirá em busca de uma Índia nova, que não existe no espaço, em naus que são construídas ‘daquilo de que os sonhos são feitos’. E o seu verdadeiro e supremo destino, de que a obra dos navegadores foi o obscuro e carnal antearremedo, realizar-se-á divinamente.”[34]. Eis o caminho que Pessoa igualmente designa como o “Caminho da Serpente”, dado que ela, a “Serpente”, “liga os contrários verdadeiros, porque, ao passo que os caminhos do mundo são, ou da direita, ou da esquerda, ou do meio, ela segue um caminho que passa por todos e não é nenhum”[35]. Aquele “que passa por todos e não é nenhum”, eis pois, segundo Pessoa, o caminho...

Pessoa, o filósofo do “outro” de nós mesmos.
                       
Para além de ter sido o filósofo do “outro” do pensar, de todo o ser e de si próprio, Pessoa foi também, a nosso ver, o filósofo do “outro” de nós mesmos, não tivesse sido ele, a par de Teixeira de Pascoaes e de Agostinho da Silva, entre outros, o filósofo que mais profundamente reflectiu sobre o que significa “ser português”. Para muitos, “ser português” significa apenas ter nascido em Portugal – apenas isso, pouco mais do que isso. Para Pessoa, ao invés, isso é precisamente o que menos importa – dado que não é no início, ao nascermos, que sabemos se somos ou não portugueses, mas apenas no fim, na hora, no instante da morte – a seu ver, com efeito, só no fim, na hora, no instante da morte, saberemos se fomos ou não portugueses. Tudo isto porque, para Pessoa, “ser português” é, essencialmente, ter um destino, um destino espiritual, a cumprir – só se sendo pois assim português na exacta medida em que se cumpre esse mesmo destino. Nessa medida, Pessoa não se dirige àqueles que olham para o seu bilhete de identidade e se consideram portugueses apenas porque aí, pretensamente, se atesta tal “estatuto”. Pessoa dirige-se antes àqueles que, independentemente de terem ou não esse bilhete de identidade, de terem ou não nascido em Portugal, se mostram disponíveis para cumprir esse destino. Só, efectivamente, quem se mostra disponível para cumprir esse destino, esse destino espiritual, pode aspirar a ser português. Quem, ao invés, não se mostra disponível para cumprir esse destino, esse destino espiritual, bem pode acenar com o seu bilhete de identidade, com o seu passaporte, com o que quer que seja. Escusa igualmente de mostrar a sua árvore genealógica ou de fazer qualquer teste sanguíneo. Não há “sangue português”, não há nada que, à partida, ateste esse “estatuto”. Ser português não é, aliás, um “estatuto” – é, tão-só, muito simplesmente, à luz desta visão, um “estado de espírito”.
Se há poema onde nos é revelado esse destino, esse poema é a Mensagem. Neste poema, neste conjunto de poemas, triádica, perfeitamente estruturado, começa o poeta por nos dizer: "A Europa jaz,(...)/ De Oriente a Occidente jaz, fitando,/ (...)/ Olhos gregos, lembrando.// Fita, com olhar sphyngico e fatal,/ O Occidente, futuro do passado.// O rosto com que fita é Portugal.”[36]. A voz que assim se faz ouvir, se é que nós na verdade a ouvimos, é, muito mais do que a voz do poeta, a voz do próprio tempo. Diz-nos ela que a Europa jaz, reduzida que está ao que resta das ruínas gregas, à nostalgia de um “paraíso perdido”, como que ancorada no impasse de um “regresso eternamente impossível”. Para a libertar desse impasse, há um rosto, um rosto que fita, um rosto, um espelho no qual ela se fita: Portugal. Eis, com efeito, nas palavras de Pessoa, o destino de Portugal, desde logo, da “arte portuguesa”: “Arte portuguesa será aquela em que a Europa – entendendo por Europa principalmente a Grécia antiga e o universo inteiro – se mire e se reconheça sem se lembrar do espelho. Só duas nações – a Grécia passada e o Portugal futuro – receberam dos deuses a concessão de serem não só elas mas também todas as outras.”[37]. Ainda nas palavras do próprio Pessoa, é esse, efectivamente, o destino da nossa nação – ser não só ela “mas também todas as outras” –, o nosso próprio destino – “sermos tudo”: “Quem, que seja português, pode viver a estreiteza de uma só personalidade, de uma só nação, de uma só fé? Que português verdadeiro pode, por exemplo, viver a estreiteza estéril do catolicismo, quando fora dele há que viver todos os protestantismos, todos os credos orientais, todos os paganismos mortos e vivos, fundido-os portuguesmente no Paganismo Superior. Não queiramos que fora de nós fique um único Deus! Absorvamos os deuses todos! Conquistámos já o Mar: resta que conquistemos o Céu, ficando a terra para os Outros, os eternamente Outros, os Outros de nascença, os europeus que não são europeus porque não são portugueses. Ser tudo, de todas as maneiras, porque a verdade não pode estar em faltar ainda alguma coisa!”[38].
Toda a nossa história foi pois assim, nessa medida, uma demorada preparação para a concretização desse destino. Desde Viriato, aquele cujo ser “é como aquella fria Luz que precede a madrugada”[39], que todos os seus personagens foram os intérpretes dessa obra que, desde sempre, beneficiou da “assistência divina” – eis, pelo menos, o que Pessoa expressamente nos assegura, logo a abrir a segunda parte da sua Mensagem: “Deus quere, o homem sonha, a obra nasce./ Deus quiz que a terra fosse toda uma,/ Que o mar unisse, já não separasse./ Sagrou-te, e foste desvendando a espuma,// E a orla branca foi de ilha em continente,/ Clareou, correndo, até ao fim do mundo,/ E viu-se a terra inteira, de repente,/ Surgir, redonda, do azul profundo (…).”[40]. Essa obra assim descrita não foi, contudo, como muitos pensam, nem a nossa “idade de ouro” nem, muito menos, o nosso “último passo”. Neste equívoco, neste recorrente equívoco, cada vez mais enraizado, reside, aliás, o maior entrave à concretização desse nosso destino. Paradoxalmente, as “Descobertas” significaram o nosso próprio “Encobrimento”. E por isso esperamos ainda pelo regresso do “Encoberto”, aquele que, ainda nas palavras do poeta, partiu na “última nau”: “Levando a bordo El-Rei D. Sebastião,/ (...)/ Foi-se a última nau (...)// Não voltou mais. A que ilha indescoberta/ Aportou? Voltará da sorte incerta/ Que teve? (...)// Ah, quanto mais ao povo a alma falta,/ Mais a minha alma atlantica se exalta/ E entorna,/ E em mim, num mar que não tem tempo ou spaço,/ Vejo entre a cerração teu vulto baço/ Que torna.// Não sei a hora, mas sei que ha a hora (...).”[41]. O regresso de “D. Sebastião” não significa, contudo, senão o regresso de nós mesmos a nós próprios. Somos nós – é o Homem – o verdadeiro “Encoberto”. Recordemos aqui, a este respeito, as já célebres palavras de Sampaio Bruno, escritas em jeito de conclusão do seu O Encoberto: “Dissipe-se a nuvem que encobre o herói. O herói não é um príncipe predestinado. Não é mesmo um povo. É o Homem.”.
A viagem, a verdadeira viagem, está pois ainda por se iniciar. Ela só agora realmente se inicia – como nos diz o poema, já na sua terceira parte: “Grécia, Roma, Cristandade,/ Europa – os quatro se vão (...).”[42]. Falta, pois, cumprir Portugal, falta, assim, realizar o “Quinto Império” – o Império Outro, Outro porque realmente espiritual. E por isso ele não será apenas mais um Império, apenas mais um “Cadáver adiado”, um “Cadáver mandando”, como o são todos os Impérios não espirituais – nas palavras de Pessoa: “Todo o Império que não é baseado no Império Espiritual é uma Morte de Pé, um Cadáver mandando.”[43]. Para isso, contudo – para que o “Quinto Império” não seja apenas mais um Império, mas sim o Império Outro –, importa que Portugal se negue enquanto tal. Só assim ele se cumprirá. Só, com efeito, negando-se enquanto tal, só, efectivamente, outrando-se, poderá Portugal ser esse outro, esse “rosto” em que todos “se mirem e se reconheçam sem se lembrarem do espelho”. Persistindo em ser, Portugal nada será. Importa pois assim que ele deixe de ser – nas igualmente já célebres palavras de Agostinho da Silva: “Só então Portugal, por já não ser, será.”. Eis, em suma, o destino que Pessoa nos traça, destino esse em tudo idêntico ao seu próprio destino enquanto pessoa. Como aqui vimos, também Pessoa, com efeito, enquanto pessoa, se procurou cumprir precisamente desse modo: na negação, na outração de si mesmo, assim procurado “ser todos”, assim procurando “ser tudo de todas as maneiras”. Dirão alguns que, por isso, o “Quinto Império” não passa de um “sonho”, de mais uma das muitas “projecções pessoanas”. Pessoa, ele próprio, reconhece-o, porém. Daí, aliás, o seu repto: “Comecemos por nos embebedar desse sonho, por o integrar em nós, por o incarnar. Feito isso, cada um de nós independentemente e a sós consigo, o sonho se derramará sem esforço em tudo que dissermos ou escrevermos, e a atmosfera estará criada, em que todos os outros, como nós, o respirem. Então se dará na alma da nação o fenómeno imprevisível de onde nascerão as Novas Descobertas, a Criação do Mundo Novo, o Quinto Império. Terá regressado El-Rei D. Sebastião.”[44].



[1] Textos Filosóficos, 2 vols., estabelecidos e prefaciados por António Pina Coelho, Lisboa, Edições Ática, 1994.
[2] Ibid., vol. I, p. 4.
[3] Ibid., pp. 3-4.
[4] Ibid., pp. 7-11.
[5] Ibid., p. 8.
[6] Ibid., p. 9.
[7] Ibid., p. 9.
[8] Ibid., vol. II, p. 81.
[9] Ibid., vol. I, pp. 42-44.
[10] bid., p. 42.
[11] Ibid., p. 43.
[12] Ibid., pp. 44-46.
[13] Cf. Obras de Fernando Pessoa, vol. II, organização, introdução e notas de António Quadros, Porto, Lello & Irmão – Editores, 1986, p. 768.
[14] Cf. Obras de Fernando Pessoa, vol. I, introduções, organização, bibliografia e notas de António Quadros e Dalila Pereira da Costa, Porto, Lello & Irmão – Editores, 1986, p. 1037.
[15] Cf. ibid., p. 279.
[16] Obras, vol. II, p. 1014.
[17] Cf. Obras, vol. I, p. 1029.
[18] Cf. Obras, vol. II, p. 1013.
[19] Cf. Obras, vol. I, p. 910.
[20] Cf. Obras, vol. II, p. 750.
[21] Cf. ibid., p. 667.
[22] Cf., ibid., p. 564.
[23] Textos Filosóficos, vol. I, p. 20.
[24] Cf. Obras, II, p. 562.
[25] Cf. ibid., p. 666.
[26] Cf. ibid., p. 625.
[27] Cf. Obras, I, p. 1115.
[28] Cf. ibid., p. 370.
[29] Cf. ibid., p. 957.
[30] Cf. ibid., p. 874.
[31] Cf. ibid., p. 264.
[32] Ibid., p. 899.
[33] Cf. Obras de Fernando Pessoa, vol. III, introduções, organização, bibliografia e notas de António Quadros, Porto, Lello & Irmão – Editores, 1986, p. 684.
[34] Obras, vol. II, pp. 1194-1195.
[35] Cf. Obras, vol. III, p. 520.
[36] Obras, vol. I, p. 1145.
[37] Obras, vol. III, p. 702.
[38] Ibid., pp. 703-704.
[39] Cf. Obras, vol. I, p. 1147.
[40] Ibid., p. 1154.
[41] Ibid., p. 1160.
[42] Ibid., p. 1162.
[43] Obras, vol. III, p. 682.
[44] Ibid., p. 710.