
Leonardo di ser Piero da Vinci (1452-1519) foi, provavelmente, a figura maior do renascimento italiano e o paradigma do artista total. Na sua Biografia, Agostinho da Silva não esconde a sua admiração por esta figura, salientando a sua fidelidade a si próprio, o mesmo é dizer, ao “seu caminho, porque, embora não visse distintamente as razões em que se podia fundar, alguma coisa lhe dizia que era esse o que podia conduzir às descobertas essenciais e não a um simples repisar do que já pertencia ao passado; quando todos se voltavam para os livros, ele voltar-se-ia para a realidade e nela aprenderia tudo o que tinha de aprender, dela receberia, pelo sentido dos mistérios que na realidade existem, o impulso preciso para que não cessasse a actividade do espírito. Acima de tudo, o que era necessário era exactamente manter essa actividade bem desperta, impedir todo o entorpecimento que vem da falta de exercício ou da satisfação ou das tarefas demasiado fáceis.
“De resto – como acrescenta ainda Agostinho da Silva –, por esta sua atenção ao mundo exterior, Leonardo não fazia mais do que seguir, embora num plano muito superior e com uma força que os outros nem de longe podiam possuir, as tendências gerais da arte do seu tempo; escultores e pintores, libertos do primado de ideias religiosas, descobriam uma vida que se não moldava segundo os cânones rituais, que fugia dos esquematismos a que a arte se tivera de sujeitar; era uma vida mais rica do que os sistemas, e, portanto, mais complicada, exigindo da parte do artista que pretendia representá-la uma atenção e uma humildade de que os seus predecessores se poderiam ter dispensado”. Não que procurasse igualmente a orientação de alguns mestres – “procurava quem o pudesse ajudar a vencer as suas dificuldades e alguns dos mestres davam-lhe indicações que eram suficientes para o fazer penetrar noutros domínios da ciência”. Simplesmente, em última instância, “todos os que pretendiam estudar a natureza era a ela que se tinham de dirigir, não aos livros”. Era, a natureza, a mestre maior, a fonte de toda a verdadeira sabedoria.
Daí, em suma, essa sua vocação: “Sentia que seria capaz de ocupar toda a sua vida nessa tarefa divina de investigar, de penetrar o mistério do mundo, de a pouco e pouco o ir traduzindo nas fórmulas claras e lógicas de ligar entre si os fenómenos, por mais contraditórios que eles parecessem, de substituir ao caos que todos viam o perfeito mundo inteligível que só a raros se poderia revelar. E era para ele fora de dúvida que mesmo por aqui, e até melhor, porventura, do que na sua arte, onde talvez houvesse quem fosse mais bem dotado do que ele, poderia alcançar a fama que lhe não era totalmente indiferente; se era superior aos outros, se a sua inteligência e a sua capacidade de trabalho podiam alcançar domínios que para sempre lhe estavam fechados, por que motivo o não haveriam de reconhecer, dando-lhe as honrarias e os proventos que legitimamente lhe cabiam?”. Um único obstáculo se levantava: “a multiplicidade dos seus dons”[1]. Por isso, por esse seu génio multifacetado, foi saudado pelos poetas[2]. Por isso permaneceu, segundo Agostinho, como um paradigma para a Humanidade[3].
[1] A “multiplicidade dos seus dons lhe aparecia por vezes como um obstáculo”.
[2] “Os poetas saudavam-no com versos mais sinceros talvez do que elegantes, e os nobres, agora, como que orgulhosos das suas relações com Leonardo, mostravam-se dispostos a satisfazer todos os seus desejos, a dar-lhe tudo aquilo de que precisasse para os seus trabalhos”.
[3] “Pondo de lado as suas ideias do dilúvio, de uma catástrofe em que tudo se aniquile, Leonardo abre uma esperança aos homens; se quiserem construir o futuro, se souberem canalizar para a empresa todos os recursos de inteligência e de vontade, hão-de surgir um dia homens que pelo corpo e alma farão de nós a diferença que nós fazemos dos animais; e a vida lhes será um paraíso, mas um paraíso sem apatia, e um paraíso que terão construído pelo seu próprio esforço pela persistência, pela renovada tentativa ante cada desastre, ante cada obstáculo”.
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