
Lamennais (1782-1854) foi, em França, uma das figuras mais controversas da Igreja Católica. Em parceria com o seu irmão Jean, foi um teorizador do “ultramontanismo”, doutrina política dos católicos franceses que buscava a inspiração na Cúria Romana, defendendo a autoridade absoluta do Papa em matéria de fé e disciplina.
Na sua Biografia, Agostinho da Silva não escamoteia essa sua teorização – ao invés, salienta que, para Lamennais, esse era o único remédio para os males do mundo: “Para todos estes males só pode haver um remédio, o do restabelecimento das crenças em toda a sua força, com uma disciplina de pensamento, um apoio sólido para o fraco, um chefe espiritual que não deixe que os desvios apareçam e se afirmem: com tais características, só a Igreja Católica, só ela, para Lamennais, poderia salvar o mundo.”.
Para Lamennais, essa era, de resto, uma solução perfeitamente racional: “Só há uma resposta aceitável: a de que houve comunicação de uma inteligência superior; a doutrina católica de revelação feita por Deus ao homem fica, portanto, assente em bases racionais, e mais ainda: como as revelações de Deus só se conservam pela tradição e a Igreja é depositária da tradição, a Igreja é depositária da verdade e tem o direito de impô-la, de modo a reorganizar-se a vida abalada pelos malefícios da razão individual”.
Só assim, para Lamennais, acrescenta ainda Agostinho da Silva, se poderia construir “o paraíso de que verdadeiramente tinha falado Jesus: uma sociedade nova construída pela inteligência e pela vontade dos homens, um mundo de entendimento fraterno, de cooperação, de justiça económica, uma terra em que pudesse haver verdadeira paz e se pudesse ser cristão”. Nem mesmo assim, de resto, sob o poder absoluto da Igreja Católica, esse “paraíso” se poderia realizar imediatamente: “nem pensar num paraíso imediato; havia apenas as condições do reino: tudo o restante dependeria da inteligência e do trabalho”.
Eis, em suma, o retrato que nos faz Agostinho da Silva de Lamennais – um retrato, ainda assim, compreensivo, senão mesmo simpático: “Quem o lia com alguma atitude compreensiva e simpática descobria, para lá das fórmulas rudes e das frases irónicas, esse fogo de amor que não sabia exprimir-se com brandura e que, nada contemplativo, só plenamente se descobria pela acção, pelo combate enérgico contra tudo o que pudesse diminuí-lo no mundo” –, em que defende, inclusivamente, a sua “forte humanidade”[1].
[1] “a sua forte humanidade levava-o a que, na maior parte do seu tempo, não pudesse ter de tudo o que se passava a visão calma, superior, do pleno perceber e do pleno perdoar, que poderia ter um Deus no seu extremo limite; mas o ver-se de quando em quando arrastado pela luta, se lhe trazia um prazer de momento, aumentava-lhe depois a incerteza e o remorso; não era digno de um sacerdote de Cristo aquela maneira rude, sacudida, sarcástica; devia ter-se comportado com mais fraternidade, devia ter escrito com mais brandura, entendendo os motivos que ao próprio opositor se ocultavam, penetrando com mais aguda inteligência nos domínios superiores em que o agressor e a vítima aparecem como que impelidos pela mesma fatalidade e em que toda a tarefa de correcção não pode ir acompanhada de condenação e zombarias; seguia muito mal o preceito de não julgar, ao mesmo tempo que percebia estar nesta parte o fundamental de uma doutrina de verdadeiro amor, que o mesmo é de verdadeira ciência; mas o demónio temperamental levava-o a excessos que a inteligência reprovava e decerto grande parte das polémicas em que se tinha envolvido vinha dos seus defeitos, não dos defeitos do adversário; pensava, por vezes, em abandonar uma acção que não fazia perfeita: mas logo se lhe representavam os males que era forçoso abater e de novo partia, quase resignado ao seu destino de sofrer, logo tomado, mal o combate começava, de um furor, de um entusiasmo que nem lhe deixavam pensar no mal que ele próprio poderia provocar; e quando havia maior excitação, nem em casa tinha um momento de repouso: os visitantes encontravam-no de olhos em brasa, pequeno, enérgico, vibrante de indignação, percorrendo o quarto a passos rápidos e nervosos, quase arrastando pelo chão as abas da sobrecasaca puída e esverdeada; era de facto como uma chama, breve e ardente, que se renovava, ondeava, dardejava a sua língua de fogo, parecia baixar, ir expirar, quando se erguia mais brilhante, mais aguda, quase insuportável de clareza e de poder destruidor; falava sempre, sem escutar objecções, exaltando-se ao mínimo argumento que ousavam pôr-lhe, e a cada passo a sombria eloquência de profeta se cruzava com a dura ironia, que mais se impunha na alma dos que o escutavam e os deixava sob uma impressão de amargura e de tristeza.”
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