Dissertar sobre um determinado pensamento é, fatalmente, dissertar sobre a sua actualidade. Só nos é possível falar de um determinado pensador na exacta medida em que ele tem ainda algo para nos dizer. O mesmo se passa com António Vieira, com o seu pensamento, com o seu projecto: o Quinto Império. O mesmo se passa com Platão, Aristóteles, Nietzsche ou Hegel. Se eles já não têm nada para nos dizer, impossível, ou, se possível, inteiramente fútil, é falar sobre eles. Tão inteiramente fútil quanto avaliar a importância de um determinado pensamento no estrito horizonte da sua época – se um pensamento tem algum valor é na exacta medida em que transcende o estrito horizonte da sua época, em que consegue repercutir-se na actualidade... Nessa medida, ao dissertarmos sobre o projecto quinto-imperial de António Vieira, iremos procurar, sobretudo, dissertar sobre a sua “actualidade”.
II
Se quanto aos propósitos últimos do projecto quinto-imperial nada há a apontar a Vieira – todos estaremos por certo de acordo com tais propósitos, não visassem estes, como dissemos, potenciar a optimização ontológica do mundo existente –, já quanto ao modo de realização dos mesmos, objecções várias se levantam.
A primeira delas prende-se, essencialmente, com a expressa e reiterada identificação que nos faz Vieira, ao longo da sua obra, do Quinto Império com o Império de Cristo. Com efeito, se pelo Quinto Império se pretende consagrar a igual dignidade de todos os homens, na cumulativa consagração da essencial relação de todos nós com o absoluto ser divino, não parece haver, pelo menos à partida, qualquer razão válida para que privilegiemos a visão cristã de Deus em desfavor de todas as outras.
A objecção parece efectivamente pertinente. Ela falha contudo, pelo menos em parte, no seguinte: ela parte do pressuposto de que todas as visões de Deus, de que todas as religiões, se equivalem, de que todas elas são qualitativamente iguais entre si. Ora esse não é o pressuposto de Vieira. Mal ou bem, considera ele que a religião cristã é qualitativamente superior a todas as outras religiões.
Não significa isto que, para Vieira, a religião cristã se cumpra na anulação de todas as outras religiões. Se assim fosse, ela não seria, aliás, qualitativamente superior. E isto porque, para Vieira, a superioridade qualitativa da religião cristã manifesta-se, precisamente, pelo facto de ela não se pretender opor a nenhuma outra, mas, ao invés, em si pretender integrar todas as diversas visões de Deus. Daí a sua concepção da religião de Cristo enquanto religião da Cruz: enquanto religião que se cumpre no mútuo cruzamento, na mútua integração, de todas as diversas religiões.
De resto, toda a religião, inclusivamente a religião cristã, não constitui mais do que um mero trânsito mediativo – a própria palavra, aliás, etimologicamente considerada, isso mesmo o indicia. Ela não se constitui como um fim para si mesma. O que todas as religiões pretendem é realizar a re-ligação com Deus. Esse é o seu efectivo fim. Daí que em última instância, realizada a re-ligação com Deus, todas as religiões se anulem a si próprias. Inclusivamente a religião cristã – também ela em última instância, realizada a re-ligação com Deus, a si própria se anulará.
Em última instância, não subsiste pois qualquer privilégio da religião cristã relativamente a todas as outras religiões. Realizada a re-ligação com Deus, todas elas, sem excepção, a si próprias se anularão. Daí que já nem seja sequer correcto identificar, enfim, o Quinto Império com o Império de Cristo. Se, com efeito, o Quinto Império é já a efectiva expressão da realização da re-ligação com Deus, então a figura de Cristo, enquanto figura mediadora, enquanto figura mediadora por excelência, já foi entretanto superada. O Quinto Império não é já então o Império de Cristo. Ele é já, na sua suprema acepção, a superação do Império de Cristo – eis a necessária, por muito que herética, conclusão de todo este trânsito de realização do projecto quinto-imperial.
O que dissemos da religião cristã aplica-se também, ainda com maior cabimento, ao papel da Igreja neste trânsito de realização do Quinto Império. Ela, a Igreja de Cristo, a Igreja Católica, tem apenas um papel mediativo. Ela constitui-se, tão-só, como a mediação institucional pela qual se realiza o Quinto Império, pela qual se cumpre a re-ligação com Deus. Eis todo o seu papel, como o próprio António Vieira nos assegura, mesmo quando, em múltiplas passagens da sua obra, exalta o insubstituível papel da sua Igreja – não fosse ela, na época, a mais sólida de todas as instituições, aquela que, por via disso, melhor poderia dirigir os destinos do mundo.
Com efeito, e não é preciso ser cristão para o reconhecer, na época era a Igreja de Cristo, a Igreja Católica, a mais sólida de todas as instituições. Num tempo em que o próprio mundo se parecia estar a refazer, em que ele se estava ainda a descobrir, só a Igreja Católica poderia de modo efectivo assumir-se como a grande instituição de referência da humanidade. Na época, era de facto ela que dirimia os principais conflitos entre os diversos povos, aquela que conseguia, pela sua força, pelo seu prestígio, gerar os maiores consensos. Daí que ao defender de forma tão assumida o papel da Igreja Católica na direcção dos destinos do mundo não estivesse apenas Vieira a defender a missão espiritual da sua Igreja – estava também, desde logo, a defender a sua influência política, a sua influência sobre os principais soberanos políticos desse tempo.
Efectivamente, e ao contrário do que por vezes possa parecer, António Vieira não era nada ingénuo. Em muitos dos seus textos dá mostras de uma lucidez política digna de Maquiavel. Não significa isto que a sua concepção da acção política fosse a mesma – como temos dito, para Vieira a acção política tinha apenas uma função mediativa: potenciar a suprema realização do homem, na sua re-ligação com Deus. O seu projecto, o Quinto Império, era, como também já dissemos, um império de cariz essencialmente espiritual. Enquanto realização histórica, humana e universal ele teria também, contudo, que se cumprir no plano político. Daí a atenção de Vieira às vicissitudes políticas do seu tempo, a sua sensibilidade às grandes movimentações sociais. Não se cumprisse o Quinto Império em todos os espaços, em todas as paragens, em todos os lugares.
II
Se quanto aos propósitos últimos do projecto quinto-imperial nada há a apontar a Vieira – todos estaremos por certo de acordo com tais propósitos, não visassem estes, como dissemos, potenciar a optimização ontológica do mundo existente –, já quanto ao modo de realização dos mesmos, objecções várias se levantam.
A primeira delas prende-se, essencialmente, com a expressa e reiterada identificação que nos faz Vieira, ao longo da sua obra, do Quinto Império com o Império de Cristo. Com efeito, se pelo Quinto Império se pretende consagrar a igual dignidade de todos os homens, na cumulativa consagração da essencial relação de todos nós com o absoluto ser divino, não parece haver, pelo menos à partida, qualquer razão válida para que privilegiemos a visão cristã de Deus em desfavor de todas as outras.
A objecção parece efectivamente pertinente. Ela falha contudo, pelo menos em parte, no seguinte: ela parte do pressuposto de que todas as visões de Deus, de que todas as religiões, se equivalem, de que todas elas são qualitativamente iguais entre si. Ora esse não é o pressuposto de Vieira. Mal ou bem, considera ele que a religião cristã é qualitativamente superior a todas as outras religiões.
Não significa isto que, para Vieira, a religião cristã se cumpra na anulação de todas as outras religiões. Se assim fosse, ela não seria, aliás, qualitativamente superior. E isto porque, para Vieira, a superioridade qualitativa da religião cristã manifesta-se, precisamente, pelo facto de ela não se pretender opor a nenhuma outra, mas, ao invés, em si pretender integrar todas as diversas visões de Deus. Daí a sua concepção da religião de Cristo enquanto religião da Cruz: enquanto religião que se cumpre no mútuo cruzamento, na mútua integração, de todas as diversas religiões.
De resto, toda a religião, inclusivamente a religião cristã, não constitui mais do que um mero trânsito mediativo – a própria palavra, aliás, etimologicamente considerada, isso mesmo o indicia. Ela não se constitui como um fim para si mesma. O que todas as religiões pretendem é realizar a re-ligação com Deus. Esse é o seu efectivo fim. Daí que em última instância, realizada a re-ligação com Deus, todas as religiões se anulem a si próprias. Inclusivamente a religião cristã – também ela em última instância, realizada a re-ligação com Deus, a si própria se anulará.
Em última instância, não subsiste pois qualquer privilégio da religião cristã relativamente a todas as outras religiões. Realizada a re-ligação com Deus, todas elas, sem excepção, a si próprias se anularão. Daí que já nem seja sequer correcto identificar, enfim, o Quinto Império com o Império de Cristo. Se, com efeito, o Quinto Império é já a efectiva expressão da realização da re-ligação com Deus, então a figura de Cristo, enquanto figura mediadora, enquanto figura mediadora por excelência, já foi entretanto superada. O Quinto Império não é já então o Império de Cristo. Ele é já, na sua suprema acepção, a superação do Império de Cristo – eis a necessária, por muito que herética, conclusão de todo este trânsito de realização do projecto quinto-imperial.
O que dissemos da religião cristã aplica-se também, ainda com maior cabimento, ao papel da Igreja neste trânsito de realização do Quinto Império. Ela, a Igreja de Cristo, a Igreja Católica, tem apenas um papel mediativo. Ela constitui-se, tão-só, como a mediação institucional pela qual se realiza o Quinto Império, pela qual se cumpre a re-ligação com Deus. Eis todo o seu papel, como o próprio António Vieira nos assegura, mesmo quando, em múltiplas passagens da sua obra, exalta o insubstituível papel da sua Igreja – não fosse ela, na época, a mais sólida de todas as instituições, aquela que, por via disso, melhor poderia dirigir os destinos do mundo.
Com efeito, e não é preciso ser cristão para o reconhecer, na época era a Igreja de Cristo, a Igreja Católica, a mais sólida de todas as instituições. Num tempo em que o próprio mundo se parecia estar a refazer, em que ele se estava ainda a descobrir, só a Igreja Católica poderia de modo efectivo assumir-se como a grande instituição de referência da humanidade. Na época, era de facto ela que dirimia os principais conflitos entre os diversos povos, aquela que conseguia, pela sua força, pelo seu prestígio, gerar os maiores consensos. Daí que ao defender de forma tão assumida o papel da Igreja Católica na direcção dos destinos do mundo não estivesse apenas Vieira a defender a missão espiritual da sua Igreja – estava também, desde logo, a defender a sua influência política, a sua influência sobre os principais soberanos políticos desse tempo.
Efectivamente, e ao contrário do que por vezes possa parecer, António Vieira não era nada ingénuo. Em muitos dos seus textos dá mostras de uma lucidez política digna de Maquiavel. Não significa isto que a sua concepção da acção política fosse a mesma – como temos dito, para Vieira a acção política tinha apenas uma função mediativa: potenciar a suprema realização do homem, na sua re-ligação com Deus. O seu projecto, o Quinto Império, era, como também já dissemos, um império de cariz essencialmente espiritual. Enquanto realização histórica, humana e universal ele teria também, contudo, que se cumprir no plano político. Daí a atenção de Vieira às vicissitudes políticas do seu tempo, a sua sensibilidade às grandes movimentações sociais. Não se cumprisse o Quinto Império em todos os espaços, em todas as paragens, em todos os lugares.
3 comentários:
Li com atenção o texto, assim como leio, na medida em que o tempo me permite, quase tudo o que aqui é publicado.
Mas...deparei-me com vários textos publicados de ontem para hoje e alguns deles bastante extensos.
Ainda não os li, embora pense fazê-lo.
Mas acontece que sendo tantos isso dificulta uma leitura cuidada e reflexiva.
Acresce ainda que sendo publicados com uma curta distância temporal uns dos outros acabam por perder parte do impacto que poderiam ter.
Não há hipótese de "regulamentar" este aspecto?
Seria positivo para uma leitura mais proveitosa dos diferentes artigos.
Há dias assim, mais profíquos. É difícil regulamentar, quando já há bem mais de 200 pessoas a poder escrever... Em todo o caso, não tem que ler tudo de um dia para o outro. Poderá depois fazer uma leitura mais demorada e selectiva, inclusive recorrendo às etiquetas. A esse respeito, saliento que está a ser feito um trabalho muito meticuloso...
Eu sei que não tenho que ler tudo de um dia para o outro. Eu é que devo ser possuidora de uma curiosidade "desmesurada" que me leva a dificilmente protelar a leitura:)
E entendo perfeitamente que com tanta gente a poder escrever seja complicado contornar a situação.
E há as etiquetas, têm razão. Pode parecer ridículo, mas nem me tinha lembrado desse pormenor.
Agradeço a resposta, sinceramente.
Cumprimentos.
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