“A existência humana sobrevém num mundo que lhe é dado e cuja construtura e fenomenalidade são o que são; como pensar em ordem a que o Universo se torne racionalmente explicável, o pensamento se adeque plenamente à razão de ser de tudo o que existe e a vida espiritual se converta em fruição da beatitude, ou por outras palavras, em plena compreensão e em inalterável contentamento e paz de consciência? § Tais são as perguntas capitais a que este Livro [Ética de Espinosa] procura responder e cujo alcance e íntimo enlace somente se apreendem desde que sejam consideradas como marcos de uma única inquirição, que ao adentrar-se em si mesma se foi transmudando em teoria do ser, em teoria do saber e em teoria do proceder”.
Joaquim de Carvalho, Introdução à Ética de Espinosa
Apontamento Biográfico
Joaquim de Carvalho nasceu no dia 10 de Junho de 1892 na Figueira da Foz.
Licenciou-se em direito na Universidade de Coimbra em 1914 e, no ano imediatamente a seguir, formou-se em Filosofia, na mesma instituição. Torna-se assistente no departamento de Filosofia no ano de 1916 e defende o seu doutoramento, dedicado ao pensar pedagógico, humanista e filosófico de António de Gouveia (1510?-1566), em 1917 – “António de Gouveia e o Aristotelismo da Renascença”. Dois anos depois, até ao fim da sua vida, passa a exercer funções de professor catedrático de História da Filosofia na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, cujas provas de concurso têm por base o trabalho “Leão Hebreu, Filósofo (Para a História do platonismo na Renascença)”.
Para além de se ter dedicado, na sua vida inteira, à Universidade de Coimbra, quer como professor, quer como administrador da Imprensa da Universidade de Coimbra, entre 1921 e 1935 (na qual editou nomes que, à época, estavam ainda a despontar intelectual e cientificamente – o caso de Agostinho da Silva (1906-1994) ou de Adolfo Casais Monteiro (1908-1972), por exemplo), Joaquim de Carvalho, por outro lado, apoiou o projecto da Universidade Livre de Coimbra, bem como fez frente à ideia de Leonardo Coimbra (1883-1936), enquanto Ministro da Educação, de transferir a Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra para o Porto.
Assumidamente liberal e maçon, Joaquim de Carvalho foi, no contexto da academia portuguesa, um dos primeiros a contribuir para um estudo mais aprofundado dos filósofos modernos, sobretudo dos pensamentos de Espinosa (1632-1677) e de Hegel (1770-1831). Para além disso, dedica-se ainda ao estudo fenomenológico da Saudade.
Durante algum tempo foi director da Biblioteca da Universidade de Coimbra. Dirigiu a Revista da Universidade de Coimbra, a Biblioteca Filosófica e colaborou nas revistas mais importantes da sua época, entre elas, destacamos a Seara Nova, apesar de o seu perfil não ser notoriamente seareiro.
Morreu no dia 27 de Outubro de 1958, na cidade de Coimbra.
Apontamento Crítico
Quando nos lembramos de Joaquim de Carvalho, vem-nos logo ao espírito o seu neokantismo, o seu pendor espinosista e a sua dedicação à divulgação da obra de Baruch de Espinosa e, por vezes, esquecemo-nos da sua intervenção no âmbito da cultura portuguesa. Se o nosso professor de Coimbra foi um dos pioneiros, na nossa academia, em fomentar a área da hermenêutica filosófica moderna e contemporânea, foi, igualmente, um dos primeiros a discutir e a sintetizar a cultura filosófica portuguesa, bem como, ao lado de Leonardo Coimbra e do seu amigo Teixeira de Pascoaes (1877-1952), em sugerir uma fenomenologia da Saudade, que tanto influenciará os estudiosos do futuro. Dalila Pereira da Costa (1918) – uma das maiores estudiosas do fenómeno da Saudade -, por exemplo, reclama-se da herança deixada por Joaquim de Carvalho. Uma herança que, apesar de não descurar o rigor científico e metodológico dos pensadores modernos, não se fecha ao contexto da cultura específica de Portugal. É neste sentido que Joaquim de Carvalho se define como um seguidor das teses hegelianas: no seu entender, cada povo, ao situar-se universalmente, porque ultrapassa as suas realidades concretas, possui uma maneira própria e específica de se exprimir filosoficamente, isto é, usa determinados termos e conceitos que são naturais da sua gente e da sua cultura. De alguma maneira, a visão de Joaquim de Carvalho tende a desmistificar e até mesmo a superar a velha problemática “universalismo versus regionalismo”, que tanto foi aproveitada, no início do século XX, em Portugal, para discutir a renascença da cultura portuguesa, quer pelos saudosistas quer pelos racionalistas críticos, e que, no nosso entendimento, hoje deveria estar mais do que ultrapassada, ainda que devidamente compreendida e estudada. Afinal, se, pela sua natureza e pelo seu método, a Filosofia é naturalmente universal, não deixa, no entanto, de se exprimir particularmente.
Mas a paixão que Joaquim de Carvalho sentia por Espinosa era enorme e, em certa medida, ultrapassou todas as outras que o autor viveu fervorosamente durante a sua vida. Por esse motivo, traduziu e comentou, com minúcia, a obra maior do judeu de ascendência ibérica – Ética. Na introdução e nas notas deste livro, Joaquim de Carvalho, para além de defender que Espinosa tinha um contacto estreito com a língua e a cultura portuguesas, desenvolve a temática da ideia de Deus. Na sua opinião, “a Natureza é Deus desenvolvendo-se segundo leis que lhe são intrinsecamente necessárias”. Ou seja, Deus, enquanto substância única e absoluta, exprime-se em tudo o que existe, logo, manifesta-se estruturalmente através da Natureza: é a Natureza cumprindo as leis divinas. Deus é, portanto, a Natureza ou a Natureza é Deus. Todavia, a Sua manifestação não é sensitiva, mas antes racional. Para além de ser uma coisa pensante, Deus é o próprio pensamento. Ora, a partir do momento em que Deus é o pensamento por excelência, tudo o que o constitui e tudo o que de si depende e que por si é determinado, deve usar a Razão para se aperfeiçoar. No fundo, o caminho para chegar a Deus é um caminho racional. E Aquele é tão-só a estrutura racional que permite a inteligibilidade do Universo e da Natureza.
Se pretendermos definir, em poucas palavras, o campo de interesses filosóficos e culturais de Joaquim de Carvalho, não teremos muitas dificuldades em concluir que o nosso autor era um homem que, embora desde cedo se sentisse motivado pela tradição filosófica ocidental de cariz grega, alemã e francesa, não desdenhava as raízes culturais do seu país. Afinal, na sua percepção, estas eram responsáveis pela sua maneira de olhar e de questionar o mundo.
Bibliografia Indicativa
Leão Hebreu, filósofo (1918)
Espinosa perante a consciência portuguesa contemporânea (1922)
Desenvolvimento da Filosofia em Portugal durante a Idade Média (1927)
A Cultura Renascente em Portugal (1929)
Sobre o Lugar e a Origem dos antepassados de Baruch de Espinosa (1935)
Oróbio de Castro e o Espinosismo (1937)
Descartes e a Cultura Filosófica Portuguesa (1939)
O Pensamento Português da Idade Média e do Renascimento (1943)
A Cultura Castreja, sua interpretação sociológica (1946)
Estudos sobre a Cultura Portuguesa no século XVI (1947-1948)
Estudos sobre a cultura portuguesa no século XV (1949)
Leibniz e a Cultura Portuguesa (1949)
Problemática da Saudade (1950)
Hegel e o conceito de história da filosofia (1951)
Elementos Constitutivos da Consciência Saudosa (1952)
Francisco Sanches, filósofo (1952)
Compleição do Patriotismo Português (1953)
Estudos sobre a Cultura Portuguesa no século XIX (Antheriana) (1955)
Joaquim de Carvalho, Introdução à Ética de Espinosa
Apontamento Biográfico
Joaquim de Carvalho nasceu no dia 10 de Junho de 1892 na Figueira da Foz.
Licenciou-se em direito na Universidade de Coimbra em 1914 e, no ano imediatamente a seguir, formou-se em Filosofia, na mesma instituição. Torna-se assistente no departamento de Filosofia no ano de 1916 e defende o seu doutoramento, dedicado ao pensar pedagógico, humanista e filosófico de António de Gouveia (1510?-1566), em 1917 – “António de Gouveia e o Aristotelismo da Renascença”. Dois anos depois, até ao fim da sua vida, passa a exercer funções de professor catedrático de História da Filosofia na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, cujas provas de concurso têm por base o trabalho “Leão Hebreu, Filósofo (Para a História do platonismo na Renascença)”.
Para além de se ter dedicado, na sua vida inteira, à Universidade de Coimbra, quer como professor, quer como administrador da Imprensa da Universidade de Coimbra, entre 1921 e 1935 (na qual editou nomes que, à época, estavam ainda a despontar intelectual e cientificamente – o caso de Agostinho da Silva (1906-1994) ou de Adolfo Casais Monteiro (1908-1972), por exemplo), Joaquim de Carvalho, por outro lado, apoiou o projecto da Universidade Livre de Coimbra, bem como fez frente à ideia de Leonardo Coimbra (1883-1936), enquanto Ministro da Educação, de transferir a Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra para o Porto.
Assumidamente liberal e maçon, Joaquim de Carvalho foi, no contexto da academia portuguesa, um dos primeiros a contribuir para um estudo mais aprofundado dos filósofos modernos, sobretudo dos pensamentos de Espinosa (1632-1677) e de Hegel (1770-1831). Para além disso, dedica-se ainda ao estudo fenomenológico da Saudade.
Durante algum tempo foi director da Biblioteca da Universidade de Coimbra. Dirigiu a Revista da Universidade de Coimbra, a Biblioteca Filosófica e colaborou nas revistas mais importantes da sua época, entre elas, destacamos a Seara Nova, apesar de o seu perfil não ser notoriamente seareiro.
Morreu no dia 27 de Outubro de 1958, na cidade de Coimbra.
Apontamento Crítico
Quando nos lembramos de Joaquim de Carvalho, vem-nos logo ao espírito o seu neokantismo, o seu pendor espinosista e a sua dedicação à divulgação da obra de Baruch de Espinosa e, por vezes, esquecemo-nos da sua intervenção no âmbito da cultura portuguesa. Se o nosso professor de Coimbra foi um dos pioneiros, na nossa academia, em fomentar a área da hermenêutica filosófica moderna e contemporânea, foi, igualmente, um dos primeiros a discutir e a sintetizar a cultura filosófica portuguesa, bem como, ao lado de Leonardo Coimbra e do seu amigo Teixeira de Pascoaes (1877-1952), em sugerir uma fenomenologia da Saudade, que tanto influenciará os estudiosos do futuro. Dalila Pereira da Costa (1918) – uma das maiores estudiosas do fenómeno da Saudade -, por exemplo, reclama-se da herança deixada por Joaquim de Carvalho. Uma herança que, apesar de não descurar o rigor científico e metodológico dos pensadores modernos, não se fecha ao contexto da cultura específica de Portugal. É neste sentido que Joaquim de Carvalho se define como um seguidor das teses hegelianas: no seu entender, cada povo, ao situar-se universalmente, porque ultrapassa as suas realidades concretas, possui uma maneira própria e específica de se exprimir filosoficamente, isto é, usa determinados termos e conceitos que são naturais da sua gente e da sua cultura. De alguma maneira, a visão de Joaquim de Carvalho tende a desmistificar e até mesmo a superar a velha problemática “universalismo versus regionalismo”, que tanto foi aproveitada, no início do século XX, em Portugal, para discutir a renascença da cultura portuguesa, quer pelos saudosistas quer pelos racionalistas críticos, e que, no nosso entendimento, hoje deveria estar mais do que ultrapassada, ainda que devidamente compreendida e estudada. Afinal, se, pela sua natureza e pelo seu método, a Filosofia é naturalmente universal, não deixa, no entanto, de se exprimir particularmente.
Mas a paixão que Joaquim de Carvalho sentia por Espinosa era enorme e, em certa medida, ultrapassou todas as outras que o autor viveu fervorosamente durante a sua vida. Por esse motivo, traduziu e comentou, com minúcia, a obra maior do judeu de ascendência ibérica – Ética. Na introdução e nas notas deste livro, Joaquim de Carvalho, para além de defender que Espinosa tinha um contacto estreito com a língua e a cultura portuguesas, desenvolve a temática da ideia de Deus. Na sua opinião, “a Natureza é Deus desenvolvendo-se segundo leis que lhe são intrinsecamente necessárias”. Ou seja, Deus, enquanto substância única e absoluta, exprime-se em tudo o que existe, logo, manifesta-se estruturalmente através da Natureza: é a Natureza cumprindo as leis divinas. Deus é, portanto, a Natureza ou a Natureza é Deus. Todavia, a Sua manifestação não é sensitiva, mas antes racional. Para além de ser uma coisa pensante, Deus é o próprio pensamento. Ora, a partir do momento em que Deus é o pensamento por excelência, tudo o que o constitui e tudo o que de si depende e que por si é determinado, deve usar a Razão para se aperfeiçoar. No fundo, o caminho para chegar a Deus é um caminho racional. E Aquele é tão-só a estrutura racional que permite a inteligibilidade do Universo e da Natureza.
Se pretendermos definir, em poucas palavras, o campo de interesses filosóficos e culturais de Joaquim de Carvalho, não teremos muitas dificuldades em concluir que o nosso autor era um homem que, embora desde cedo se sentisse motivado pela tradição filosófica ocidental de cariz grega, alemã e francesa, não desdenhava as raízes culturais do seu país. Afinal, na sua percepção, estas eram responsáveis pela sua maneira de olhar e de questionar o mundo.
Bibliografia Indicativa
Leão Hebreu, filósofo (1918)
Espinosa perante a consciência portuguesa contemporânea (1922)
Desenvolvimento da Filosofia em Portugal durante a Idade Média (1927)
A Cultura Renascente em Portugal (1929)
Sobre o Lugar e a Origem dos antepassados de Baruch de Espinosa (1935)
Oróbio de Castro e o Espinosismo (1937)
Descartes e a Cultura Filosófica Portuguesa (1939)
O Pensamento Português da Idade Média e do Renascimento (1943)
A Cultura Castreja, sua interpretação sociológica (1946)
Estudos sobre a Cultura Portuguesa no século XVI (1947-1948)
Estudos sobre a cultura portuguesa no século XV (1949)
Leibniz e a Cultura Portuguesa (1949)
Problemática da Saudade (1950)
Hegel e o conceito de história da filosofia (1951)
Elementos Constitutivos da Consciência Saudosa (1952)
Francisco Sanches, filósofo (1952)
Compleição do Patriotismo Português (1953)
Estudos sobre a Cultura Portuguesa no século XIX (Antheriana) (1955)
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