Os portugueses tornaram-se apátridas. Rejeitaram, por inconsciência, por incúria, por falta de educação, por falta de auto-estima e, também, é preciso tê-lo bem presente, por causa da miséria extrema, depauperamento material e espiritual, os sucessivos e insistentes apelos à revolução espiritual capaz de aproximar a vida terrena à vida parasidíaca.
O Estado Novo corresponde, em termos históricos, à plena consumação desse ermamento espiritual. A “pátria” do Portugal dos pequeninos, com a sua história repleta de actos façanhudos, tornou-se o estandarte dos torcionários e dos esbirros do Fascismo que, por cá, foi ardendo num lume brando dum paternalismo matreiro, sovina e sem coração que destruiu os sonhos de, pelo menos, duas gerações atlânticas.
Com a revolução dos cravos, viveu-se a revolta contra a “pátria” dos fraticidas, a ideia contraditória duma “pátria” que assenta num paternalismo estéril e inimigo da inteligência e da audácia dos portugueses que, afirmavam, muitas vezes contra si próprios, a possibilidade das demandas transcensoras e transmutadoras. Daí a sangria de gente para lá dos Pirineus e o exílio, voluntário ou involuntário, de muitos intelectuais.
A revolta contra essa ideia de “pátria”, fez com que se esquecesse, ou pelo menos se obliterasse como lembrança significativa, a Pátria dos poetas e dos heróis, a Pátria, também, dos homens “simples” que, de forma larvar, inconsciente e a custo do seu sangue, suor e lágrimas, trouxeram Portugal até a este presente a partir do qual nos entregamos à urgente tarefa de repensarmos, ou de pensarmos a sério, a ideia de Pátria.
Essa mesma Pátria que nos exorta na Mensagem e assume um corpo pensável, e assumível como destinação ontológica, porventura de auto-transcensão, na ideia de Quinto Império que Padre António Vieira assume a partir da palavra profética de um sapateiro. Assim, do mais chão a que se pode erguer a dignidade humana.
Mas os laços históricos estavam de tal forma urdidos e enleados que na sequência dessa que poderia ter sido a antemanhã do fim da História, se com tal vocábulo pretendermos designar a exploração do homem pelo homem, o que há de mais terrível no mundo em que vivemos, preferiu-se a usura à solidariedade plenificante, a construção de estradas, de estádios de futebol, de condomínios fechados para mostrar ao resto do mundo que somos modernos (quando sempre o fomos quando nos esquecemos do que através de nós se prepara para vir ao mundo) à destruição dos cárceres intelectuais que, infelizmente, desgraçadamente, não se derrubam por decreto ou por um quase milagroso erodir das causas de embaraço, chamar-lhe vergonha era ir longe demais, a que os nossos governantes estavam fatalmente sujeitos quando, nos fóruns internacionais, se viam confrontados com a evidência insofismável das nossas estatísticas educacionais.
Ficou, portanto, decretado que em Portugal o não ir à escola é equivalente ao ir à escola na Alemanha ou em França ou em qualquer outro país que não ande a fingir que é o que deveria ser. E tratem-se os professores como a escória da terra e as Universidades como umas quantas mercearias que podem vender mais batatas e menos arroz. E, já agora, semeie-se o ódio ao funcionalismo público. Tudo em nome das evidências económicas, as únicas que contam numa época de relativismo axiológico e de abdicação ética dos cidadãos.
E é este estado de coisas que dá sentido à ideia de Pátria e actualidade à sua exploração noética. O desapossamento ontológico profundamente vivido pelo povo português, mesmo no âmago da sua alma colectiva e do seu inconsciente colectivo, marcado pela autofagia e pela recusa do que nos é próprio, torna verdadeiramente urgente o exercício colectivo da escuta essencial do eco do chamamento, historicamente incontornável, para a aventura de realizar o irrealizável.
Mas isso não quer dizer que sejamos um povo adorador de quimeras, mas apenas que pelas nossas mãos, pelo nosso ser, pela nossa integridade, pode vir a fazer-se o que não será obra humana, marcada pela necessidade histórica ou natural, ou pela vontade de construir outra realidade, mais moderna ou “avançada” do que a que já existe, que deixa muitos homens fora do círculo dos merecedores e dos sobreviventes, mas a suprema soltura de cada um dos homens descobrir que a sua plenitude é compossível com esta ou qualquer outra realidade; que ninguém nasce deserdado e que a cada momento a realeza que há no vir a ser mundo se basta a si própria. Pelo que devemos sair do reino da economia, encarada de forma deturpada como uma rede de subjugação da autonomia espiritual, a liberdade de se ser aquilo que se é sem trazer na mente quaisquer constrangimentos que não sejam auto-impostos como estratégias de emancipação, para entrarmos no império da eco-eudemonia: em vez de sermos escravos dos sistemas económicos, devemos deixar-nos possuir pelo Bem que será o não nos deixarmos enclausurar, nem que fosse num mundo perfeito, todo construído para satisfazer os nossos desejos. Ao sermos homens temos que estar à mercê de todos os elementos, mesmo os que nos trazem perigo. Toda e qualquer atitude paternalista que nos aproxime da pátriazinha dos que recusam a Frátria como a destinação mais sublime da humanidade, deve ser rejeitada.
A Compaixão é, pois, a Via. E é o que deve presidir à Globalização: cada povo deve assumir o que lhe é próprio, a todos os níveis e cada um dos homens deve encarar-se como cidadão mundo. Temos o direito de viver num mundo onde ninguém seja considerado estrangeiro e onde nenhum grupo se assuma como dono da verdade ou das vias que levam à plenificação.
Cada homem deverá ser encarado como a emanação da essência divina. Indo tão longe quanto possível: essa Essência poderá ter querido assumir-se na auto-destruição, na dor, na alegria, no crime, na ignorância, na estupidez e na Iluminação. Não devemos Escondê-la debaixo do nosso desejo de a encontrarmos à nossa maneira.
Olhando o chamado mundo lusófono não podemos deixar de o encarar como um Caos, sempre primordial. Com o seu custo tremendo no que diz respeito ao sofrimento dos povos. Olhando o mapa-mundo a partir desses territórios caóticos não podemos deixar de ver neles o despontar do Presente Eterno, aquilo a que historicamente se chama Futuro. Esses “buracos” na tecitura da trama histórica da dominação técnico-economicista nunca se interligarão num Império à medida dos pequeninos construtores de “patrias” constringentes, mas parecem antes ser o início do rasgar dos véus que impedem a planetarização da fraternidade.
4 comentários:
Excelente artigo, Paulo, parabéns! Tem muito a ver com o o artigo que vou publicar no primeiro número da "Nova Águia".
Um grade Abraço,
A
"Esbirros do fascismo"? Tão irritantes quanto os maniqueísmos de direita são os maniqueísmos do esquerda... Pensava que a NOVA ÁGUIA estava acima desse tipo (de todo o tipo) de maniqueísmos!
Como deve ter visto logo no início do blogue, este é um espaço democrático, aberto a todos.
Por isso todos os maniqueísmos, de esquerda ou de direita, são bem-vindos, desde que não ultrapassem os limites da civilidade, respeito pela dignidade humana e pelos valores democráticos.
Isso não obstante o quanto esses maniqueísmos possam ser irritantes ou não.
É preciso expressar abertamente os maniqueísmos para que estes possam ser transcendidos.
Este texto mostra a visão profunda e ampla que é necessário cultivar.
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