NO CENTENÁRIO DE ANTÓNIO
MANUEL COUTO VIANA | António Leite da Costa
ANTÓNIO
MANUEL COUTO VIANA: CRER E SER TÁVOLA REDONDA | Isabel Ponce de Leão
QUANDO ANTÓNIO MANUEL COUTO VIANA NOS ESCREVEU | José
Valle de Figueiredo
HOMENAGEM A
ANTÓNIO MANUEL COUTO VIANA | Manuel Amaro Bernardo
COUTO VIANA, POR ANTÓNIO QUADROS | Renato Epifânio
Na vasta, valiosa e venerável obra de António Quadros,
um dos livros tem por sugestivo título A
ideia de Portugal na Literatura Portuguesa dos últimos 100 anos (Fundação
Lusíada, 1989). Apesar de ser expressamente dedicada a Fernando Pessoa – “À
memória do poeta Fernando Pessoa, no ano do Centenário do seu nascimento e
sessenta anos depois de ter escrito o primeiro e o último poema da Mensagem” –, a obra é, mais
directamente, uma ramificação, actualizante, d’Os Poetas Lusíadas, de Teixeira de Pascoaes.
Tendo como propósito expresso o de “repensar o
carácter original da paideia
portuguesa, partindo de uma como que ‘amostragem’ histórica, teorética e
crítica de como os nossos escritores dos últimos 100 anos visionaram
concretamente a ideia de Portugal” (p. 17), António Quadros dedica, no âmbito
do que designa os “Poetas da Resistência Lusíada”, um capítulo a Couto Viana,
sugestivamente intitulado “António Manuel Couto Viana, entre o desespero e a
esperança apesar de tudo”.
Em homenagem a estes dois nossos insignes cultores da
portugalidade – que completariam 100 anos em 2023 –, recordamos aqui esse breve
texto, tão breve quanto lapidar, a ponto de não precisar de qualquer comentário
– excepto, quanto muito, o seguinte: algumas da considerações que António
Quadros exprime sobre Couto Viana aplicam-se igualmente a ele próprio, pois
que, tal como Couto Viana, também António Quadros não tem sido suficientemente
lembrado, o que decorre sobretudo de (más) razões ideológicas. O que não
surpreende, de todo: numa época em que a ideologia dominante é cada vez mais
anti-patriótica, nada de mais expectável que a censura vigente se vingue nestes
dois Autores.
ANTONIO MANUEL
COUTO VIANA
ENTRE O DESESPERO E A ESPERANÇA
APESAR DE TUDO
Porque choras, Portugal?
— Prenderam o meu futuro:
Jamais terei ideal
Mais puro.
.............................................
Que novo Império destinado
Lhe tem Deus, de quem é capitão?
O futuro da glória do passado
No céu, no mar, no coração!
De Ponto de Não Regresso, 1982
António Manuel
Couto Viana (1923), que em 1948 se revelou desde logo grande poeta com O Avestruz Lírico que nos anos 50 foi um
dos companheiros da Távola Redonda,
essa revista que ergueu o facho de uma poesia moderna em conciliação com as
raízes da nossa tradição lírica e que desde então publicou livros excepcionais,
como O Coração e a Espada (1951), Mancha Solar (1959), A Rosa Sibilina (1960), Relatório Secreto (1963), Desesperadamente Vigilante (1968), Pátria Exausta (1971), Raiz da Lágrima (1973) ou Nado Nada (1977), cantou, em Ponto de Não Regresso (1982), a saudade
da pátria ideal, o lamento pelo que chamou este tempo de trevas, a esperança
sebástica numa restauração ainda não impossível e o impulso para a transcensão
das grades que a seu ver prendem a nação. Incluídos na antologia da sua Poesia Completa (1948-1983), sob o
título de Era uma vez uma voz (1985)
estão ainda os seus poemas posteriores de Entretanto
entre tantos e de Retábulo para um
íntimo Natal. Recentemente (1988), Couto Viana publicou ainda A Oriente do Oriente.
Sem
ambiguidades, Couto Viana vê o 25 de Abril e o período subsequente como a época
da catástrofe, que precipitou o país para a decadência e para proximidade da
morte. Sem ambiguidades, afirma-se nacionalista, sebastianista e monárquico.
Mas é chegado o momento, cremos, de os adversários e os oponentes se ouvirem
uns aos outros. Uma voz como a de António Manuel Couto Viana tem de contar para
a força das coisas porque exprime, mais do que a sua própria emotividade
pessoal, os ecos de uma profunda vivência nacional, silenciada ou reprimida que
seja pelos ideais convencionais hoje dominantes, embora já não tão seguros de
si e dos seus dogmas.
Organizado em
estrutura coerente, Ponto de Não Regresso
divide-se em cinco partes: No Signo de
Camões; No Signo da Páscoa; No Signo do Desejado; No Signo da Restauração; e No Signo do Cárcere.
Em No Signo de Camões, Couto Viana começa
por marcar com desespero o contraste entre o Portugal dos «Lusíadas» e o
Portugal de hoje, como no poema A Camões, dolorosamente:
Coroa, bandeira,
brasão e lema,
O vasto Império
do coração,
Vou encontrá-los
no teu poema:
Na pátria, não!
Corro o teu canto
de canto a canto,
Numa demanda de
salvação;
Ali, a glória do
herói, do santo:
Na pátria, não!
Ali, num reino
ditoso e amado,
Reina sem névoa
Sebastião;
Ali, presente
pureza passada:
Na pátria, não!
Ali, se enlaçam
beleza e graça
E, na certeza de
ter missão,
Tenho o tamanho
da minha raça:
Na pátria, não!
Na Carta
apócrifa de Camões para hoje, assim principia:
Exaltei o
passado, num presente
Triste, apagado,
vil.
Mas havia o
futuro, mar em frente
Para epopeias
d'África e Brasil.
Para concluir, confundindo a sua voz com
a do Poeta:
Hoje,
o presente
É
ainda mais vil e apagado e triste
Porque,
no mar em frente,
Nenhum
futuro existe.
A
cobiça e a traição
E
não um rei, é hoje quem governa:
Dorme,
pois, para sempre, coração!
Sê
tu, silêncio, a minha pátria eterna!
Em No Signo da Páscoa, porém, a esperança
reacende-se, com a analogia com o Cristo pascal, morto e ressurrecto:
Por isso já não
creio na agonia
Do meu país:
Não morre a terra
e tudo principia
está viva a raiz!
E, em No Signo do Desejado, é mais uma vez o velho mito que levanta o
ânimo do poeta:
E quem trará na
mão o jugo e a lança?
Seu vulto, em
contraluz, saberei distinguir?
Ilumine-lhe a
face, a fé, a esperança
Sepultadas, em
flor, em Alcácer Quibir
......................................................
Que novo Império
destinado
Lhe tem Deus, de
quem é capitão?
O futuro da
glória do passado
No céu, no mar,
no coração!
Em No
Signo da Restauração há um apelo ao novo despertar:
A
nossa pátria jaz em mão fechada e alheia!
É
já dela o tractor e o chão arado,
A
moeda, a oficina, o pão da ceia!...
Pra
não termos futuro, esmagou o passado!
Vem
com teu ceptro justo, punitivo e clemente!
Vem
ser manhã na noite sepulcral!
Vem
expulsar de nós a névoa do presente
E
acorda Portugal!
No Signo do Cárcere, a quinta parte do
livro, inclui os poemas mais memorialistas e mais intimistas, pois António
Manuel Couto Viana revive experiências dolorosas, desilusões e quebras de
ânimo.
Porque é que a
pátria envelhece?
Prenderam a
mocidade:
Seiva, sol que
fortalece
A idade.
Porque choras,
Portugal?
— Prenderam o meu
futuro:
Jamais terei
ideal
Mais puro.
Noutro poema:
A luta heróica
pela pátria ideal
Arrasta umas
grilhetas:
Só vive livre
Portugal
No coração dos
seus poetas.
Em poucos
líricos, como em Couto Viana, é tão pungente a dor por algo que se perdeu,
menos do nosso passado, do que do nosso futuro. Mas os poetas acreditam na
força regeneradora e mágica do seu verbo! Por isso se lhe vai esvaindo o
desolador pessimismo com que principiara o seu livro...
Dois ou três
anos depois, efectivamente, é já expectante, senão confiante o ânimo do poeta
no magnífico tríptico de Sonetos a que deu o anagógico título de Contemplário.
Leiam-se os dois tercetos do primeiro:
Sigo solene como
um ritual,
A caminho da
pátria prometida
(Sempre dentro de
mim, de Portugal).
Pedaços e pedaços
reunida,
Do sangue
celebrado no Graal
Da vida gloriosa
além da vida.
Também os do seguinte Soneto:
Cristo das Cinco
Chagas da Vitória,
Destrói toda a
palavra transitória,
Ergue em nosso
futuro o Teu sinal.
Traze da ilha
onde se oculta, a nave.
E, nela, o Mestre
esclarecido e grave.
E, nele, um só e
imenso Portugal.
E enfim o belíssimo e «espiritual»
remate metanóico do terceiro Soneto:
Pela nave, ou
aeronave ou astronave,
Avé, o meu Senhor
em forma de ave,
Sempre mais perto
quanto mais distante.
O início sacral,
guia do mundo,
Verbo sobre a
cabeça do profundo,
É Portugal a
língua flamejante!