quarta-feira, 13 de dezembro de 2023

Paulo Freire: Democracia, Educação, Liberdade

 

Paulo Freire: Democracia, Educação, Liberdade, coord. de Maria Celeste Natário, Luís Ramos e Renato Epifânio, Porto, IF-UP, 2023, 112 pp.

ÍNDICE

NOTA DE ABERTURA | Maria Celeste Natário

PAULO FREIRE E A EDUCAÇÃO COMO VOCAÇÃO ONTOLÓGICA EM SER MAIS | Cícero Cunha Bezerra

PAULO FREIRE, (ES)CULTOR DE UMA RAZÃO PEDAGÓGICA SENSÍVEL E EMOCIONADA COM A VIDA | Elter Manuel Carlos

EDUCAÇÃO, PEDAGOGIA, DEMOCRACIA E HISTÓRIA: NÚCLEOS DO PENSAMENTO E OBRA DE PAULO FREIRE | Emanuel Oliveira Medeiros

EDUCAR PARA A TRANSFORMAÇÃO. UM SOBREVOO ANTROPOLÓGICO, ÉTICO E POLÍTICO PELO PENSAMENTO DE PAULO FREIRE | Hugo Monteiro

A PEDAGOGIA DIALÓGICA EM PAULO FREIRE: FUNDAMENTOS, ATITUDES, ATOS E ESTRATÉGIAS PARA O ENSINO SECUNDÁRIO | Joaquim Pinto

PARTILHA DE CONHECIMENTO SOBRE PAULO FREIRE E A SUA OBRA | Luiza Cortesão

(RE)ENCONTRAR PAULO FREIRE “COMO EDUCADOR E, PORTANTO, COMO POLÍTICO”: NOS TRILHOS DA ORGANIZAÇÃO ESCOLAR, DO CURRÍCULO E DAS POLÍTICAS EDUCATIVAS | Pedro Duarte

ENTRE PAULO FREIRE E MANUEL FERREIRA PATRÍCIO: NOTA SOBRE A “PEDAGOGIA DA LIBERTAÇÃO” | Renato Epifânio

Paulo Freire (1921-1997), figura de referência da Filosofia da Educação no Brasil, não tem tido em Portugal um muito significativo eco. Exemplo disso é a sua muito reduzida presença na obra de Manuel Ferreira Patrício (1938-2021), provavelmente, para não dizer certamente, a figura mais relevante da Filosofia da Educação em Portugal na segunda metade do século XX. Com efeito, ao lermos os seis grossos volumes das suas Obras Escolhidas, recentemente editadas (coord. de Renato Epifânio e Samuel Dimas, Ed. MIL, 2021), verificamos que as referências de Manuel Ferreira Patrício a Paulo Freire são muito escassas – e não por Manuel Ferreira Patrício não conhecer a obra de Paulo Freire.

Atentemos num desses exemplos: um conjunto de textos redigidos nos finais dos anos 80, coligidos sobre o título “A Libertação do Homem” (in vol. I, pp. 141-179). Na primeira parte da obra, intitulada “A Libertação do Homem e a Filosofia”, começa Manuel Ferreira Patrício por escrever: “O tema da libertação do homem é bem antigo. Encontramo-lo, por exemplo, no Antigo Testamento. É o tema nuclear do Novo Testamento. O mito de Prometeu é o mito da libertação do homem, trazida por um deus do Olimpo através da doação do fogo. A alegoria platónica da caverna é mais uma versão do anseio do homem pela sua libertação. Toda a filosofia sapiencial, de Pitágoras a Plotino, de Agostinho a Malebranche ou Espinosa, de Avicena a Ibn Arabi, de Fichte ou Schelling a Heidegger, é uma filosofia da libertação do homem.”.

De igual modo, como logo de seguida acrescenta, “toda a filosofia materialista, de Demócrito a Feuerbach e de Feuerbach a Marx, é uma filosofia da libertação do homem”. Mas não, claro está, acrescentamos agora nós, da mesma maneira. No caso da corrente em que Manuel Ferreira Patrício insere Paulo Freire – a da “pedagogia da libertação” –, podemos questionar se essa libertação aí em causa não será demasiado curta. Eis, precisamente, a questão a que Manuel Ferreira Patrício procura responder, analisando sucessivamente o “paradigma platónico da libertação do homem”, “a libertação do homem em Espinosa: da escravidão imposta pelas paixões ao amor intelectual de Deus”, “o problema da libertação do homem em Kant”, o “sentido e conteúdo da ‘libertação do homem’ no quadro da filosofia utilitarista de Jeremias Bentham”, o “sentido e conteúdo da ‘libertação do homem’ no quadro da filosofia utilitarista de Stuart Mill”, “a libertação pela filosofia no pensamento de Edmundo Husserl” e, finalmente, a “defesa da utilidade da filosofia por Epicuro”.

Tudo isto para concluir: “Na época contemporânea W. Dilthey compreendeu, talvez melhor do que qualquer outro filósofo, a pureza da concepção platónica da filosofia: a filosofia encontra a sua culminância na plena formação do homem, ou seja, na plenitude da entrega do homem a si próprio. A filosofia culmina, portanto, na antropagogia. Pela antropologia, o homem conhece-se a si mesmo; pela antropagogia, aperfeiçoa-se e cumpre-se no seu ser, à luz do conhecimento que tem de si mesmo./ Esta é uma ideia platónica. Platão continua a ser o lugar filosófico de todos os ‘regressos’. O ‘regresso’ que hoje se impõe é um regresso aberto e não totalitário ao grande filósofo de Atenas. Nos dois últimos milénios e meio numerosos têm sido, no fim de contas, os seus discípulos, mesmo quando explicitamente o renegam. Por outro lado, talvez seja preciso negá-lo em parte da letra, para o afirmar na plenitude do espírito. É que não poderá haver libertação sem liberdade, nem racionalidade universal assente no esmagamento das nacionali­dades particulares e singulares” (ibid., pp. 155-156).

Ou seja, em suma: para Manuel Ferreira Patrício, a “pedagogia da libertação” prefigurada por Paulo Freire é demasiado curta, sobretudo por partir de uma grelha marxista em que os factores materiais e sociais se sobrepõem a todos os demais – em particular, aos de ordem cultural. Ora, na dialéctica freiriana do opressor e do oprimido, ignora-se que a cultura do opressor pode servir para nos elevarmos, sendo assim, em última instância, libertadora. Apenas um exemplo: quando o Império Romano se estendeu à Península Ibérica, ele foi decerto “opressor”, como todos os Impérios. Culturalmente, porém, o Império Romano promoveu um salto qualitativo, de que ainda hoje somos tributários. Estulto seria hoje, por uma póstuma consciência de opressão, renegar todo esse legado. Manuel Ferreira Patrício, decerto, não o procurou fazer, bem pelo contrário, dada a primazia concedida à Cultura, como já tivemos a oportunidade de salientar: “Há pois uma absoluta coerência em Manuel Ferreira Patrício, na sua vida e no seu pensamento – a primazia dada à Cultura determina as suas posições quanto à Escola e à Educação, as suas posições filosóficas e, inclusivamente, as suas posições políticas: caso do seu assumido não-marxismo.” (in vol. V, p. 7).