Paulo Freire: Democracia, Educação, Liberdade, coord. de Maria Celeste Natário, Luís Ramos e Renato Epifânio, Porto, IF-UP, 2023, 112 pp.
ÍNDICE
NOTA DE ABERTURA | Maria Celeste Natário
PAULO FREIRE E A EDUCAÇÃO COMO VOCAÇÃO ONTOLÓGICA EM SER MAIS | Cícero Cunha Bezerra
PAULO FREIRE, (ES)CULTOR DE UMA RAZÃO PEDAGÓGICA SENSÍVEL E EMOCIONADA COM A VIDA | Elter Manuel Carlos
EDUCAÇÃO, PEDAGOGIA, DEMOCRACIA E HISTÓRIA: NÚCLEOS DO PENSAMENTO E OBRA DE PAULO FREIRE | Emanuel Oliveira Medeiros
EDUCAR PARA A TRANSFORMAÇÃO. UM SOBREVOO ANTROPOLÓGICO, ÉTICO E POLÍTICO PELO PENSAMENTO DE PAULO FREIRE | Hugo Monteiro
A PEDAGOGIA DIALÓGICA EM PAULO FREIRE: FUNDAMENTOS, ATITUDES, ATOS E ESTRATÉGIAS PARA O ENSINO SECUNDÁRIO | Joaquim Pinto
PARTILHA DE CONHECIMENTO SOBRE PAULO FREIRE E A SUA OBRA | Luiza Cortesão
(RE)ENCONTRAR PAULO FREIRE “COMO EDUCADOR E, PORTANTO, COMO POLÍTICO”: NOS TRILHOS DA ORGANIZAÇÃO ESCOLAR, DO CURRÍCULO E DAS POLÍTICAS EDUCATIVAS | Pedro Duarte
ENTRE PAULO FREIRE E MANUEL FERREIRA PATRÍCIO: NOTA SOBRE A “PEDAGOGIA DA LIBERTAÇÃO” | Renato Epifânio
Paulo Freire
(1921-1997), figura de referência da Filosofia da Educação no Brasil, não tem
tido em Portugal um muito significativo eco. Exemplo disso é a sua muito
reduzida presença na obra de Manuel Ferreira Patrício (1938-2021),
provavelmente, para não dizer certamente, a figura mais relevante da Filosofia
da Educação em Portugal na segunda metade do século XX. Com efeito, ao lermos
os seis grossos volumes das suas Obras
Escolhidas, recentemente editadas (coord. de Renato Epifânio e Samuel
Dimas, Ed. MIL, 2021), verificamos que as referências de Manuel Ferreira
Patrício a Paulo Freire são muito escassas – e não por Manuel Ferreira Patrício
não conhecer a obra de Paulo Freire.
Atentemos num
desses exemplos: um conjunto de textos redigidos nos finais
dos anos 80, coligidos sobre o título “A Libertação do Homem” (in
vol. I, pp. 141-179). Na primeira parte da obra, intitulada “A Libertação do
Homem e a Filosofia”, começa Manuel Ferreira Patrício por escrever: “O tema da
libertação do homem é bem antigo. Encontramo-lo, por exemplo, no Antigo
Testamento. É o tema nuclear do Novo Testamento. O mito de Prometeu é o mito da
libertação do homem, trazida por um deus do Olimpo através da doação do fogo. A
alegoria platónica da caverna é mais uma versão do anseio do homem pela sua
libertação. Toda a filosofia sapiencial, de Pitágoras a Plotino, de Agostinho a
Malebranche ou Espinosa, de Avicena a Ibn Arabi, de Fichte ou Schelling a
Heidegger, é uma filosofia da libertação do homem.”.
De igual modo,
como logo de seguida acrescenta, “toda a filosofia materialista, de Demócrito a
Feuerbach e de Feuerbach a Marx, é uma filosofia da libertação do homem”. Mas
não, claro está, acrescentamos agora nós, da mesma maneira. No caso da corrente
em que Manuel Ferreira Patrício insere Paulo Freire – a da “pedagogia da
libertação” –, podemos questionar se essa libertação aí em causa não será
demasiado curta. Eis, precisamente, a questão a que Manuel Ferreira Patrício
procura responder, analisando sucessivamente o “paradigma platónico da
libertação do homem”, “a libertação do homem em Espinosa: da escravidão imposta
pelas paixões ao amor intelectual de Deus”, “o problema da libertação do
homem em Kant”, o “sentido e conteúdo da ‘libertação do homem’ no quadro da
filosofia utilitarista de Jeremias Bentham”, o “sentido e conteúdo da
‘libertação do homem’ no quadro da filosofia utilitarista de Stuart Mill”, “a
libertação pela filosofia no pensamento de Edmundo Husserl” e, finalmente, a “defesa
da utilidade da filosofia por Epicuro”.
Tudo isto para
concluir: “Na época contemporânea W. Dilthey compreendeu, talvez melhor do que
qualquer outro filósofo, a pureza da concepção platónica da filosofia: a filosofia
encontra a sua culminância na plena formação do homem, ou seja, na plenitude da
entrega do homem a si próprio. A filosofia culmina, portanto, na antropagogia.
Pela antropologia, o homem conhece-se a si mesmo; pela antropagogia,
aperfeiçoa-se e cumpre-se no seu ser, à luz do conhecimento que tem de si
mesmo./ Esta é uma ideia platónica. Platão continua a ser o lugar filosófico de
todos os ‘regressos’. O ‘regresso’ que hoje se impõe é um regresso aberto e não
totalitário ao grande filósofo de Atenas. Nos dois últimos milénios e meio
numerosos têm sido, no fim de contas, os seus discípulos, mesmo quando
explicitamente o renegam. Por outro lado, talvez seja preciso negá-lo em parte
da letra, para o afirmar na plenitude do espírito. É que não poderá haver libertação
sem liberdade, nem racionalidade universal assente no esmagamento das nacionalidades
particulares e singulares” (ibid., pp.
155-156).
Ou seja, em
suma: para Manuel Ferreira Patrício, a “pedagogia da libertação” prefigurada
por Paulo Freire é demasiado curta, sobretudo por partir de uma grelha marxista
em que os factores materiais e sociais se sobrepõem a todos os demais – em
particular, aos de ordem cultural. Ora, na dialéctica freiriana do opressor e
do oprimido, ignora-se que a cultura do opressor pode servir para nos
elevarmos, sendo assim, em última instância, libertadora. Apenas um exemplo:
quando o Império Romano se estendeu à Península Ibérica, ele foi decerto
“opressor”, como todos os Impérios. Culturalmente, porém, o Império Romano promoveu
um salto qualitativo, de que ainda hoje somos tributários. Estulto seria hoje,
por uma póstuma consciência de opressão, renegar todo esse legado. Manuel
Ferreira Patrício, decerto, não o procurou fazer, bem pelo contrário, dada a
primazia concedida à Cultura, como já tivemos a oportunidade de salientar: “Há
pois uma absoluta coerência em Manuel Ferreira Patrício, na sua vida e no seu
pensamento – a primazia dada à Cultura determina as suas posições quanto à
Escola e à Educação, as suas posições filosóficas e, inclusivamente, as suas
posições políticas: caso do seu assumido não-marxismo.” (in vol. V, p. 7).